"É da minha natureza"

 


"Pessach: a travessia" é o nome de um romance escrito por Carlos Heitor Cony, lançado originalmente em 1967, ano em que se estruturava de forma definitiva o horror do regime instaurado pelo Golpe de Primeiro de Abril. Um ano depois, para lembrar, os militares baixaram o Ato Institucional nº 5, o mais poderoso, cruel e sanguinário instrumento legislativo da linha dura. É um livro fundamental para entender um pouco melhor o que foi aquele tempo, e digo isso ressaltando que ele foi escrito quando os piores momentos ainda estavam por vir. 

O livro conta a história de Paulo Simões, na verdade Paulo Simon, de origem judaica, um escritor que transita entre a mediocridade e algum reconhecimento literário e é o retrato típico do sujeito politicamente alienado, que tem como única preocupação a sua própria satisfação. Por eventos inusitados que são construídos e descritos com a genialidade característica de Cony, Paulo acaba se engajando na resistência pela luta armada. Embora o panorama político seja o tema de fundo do romance, não é disso que eu quero falar agora, mas sim de algo que também tem a ver com a época da narrativa. 1960 foi a década da revolução sexual, que teve seu auge num dia 7 de setembro muito diferente, nesse aspecto, do que esses que nos últimos anos foram sequestrados pelo ex-presidente e seu exército fanatizado. Naquele dia, as mulheres queimaram os sutiãs em praça pública. Não houve fogo de verdade, mas a fogueira simbólica arde e queima os corpos e as mentes de muita gente ainda hoje.

Em Pessach, as mulheres têm papel fundamental. São elas que definem a trajetória do protagonista. A ex-exposa, a filha, a amante urbana, a amante guerrilheira, as amantes eventuais e, acima de qualquer outra, a mulher que ele odiou desde o primeiro momento e amou no final da história, são todas mulheres que exercem influência nas suas condutas. Tira-se as mulheres do livro e ele desaparece. Como genial cronista que era, Cony não deixa de retratar a realidade cultural ao observar a maneira como a mulher era vista no contexto social da época (da época?...). Em linguagem moderna, poderia se dizer que esta é uma abordagem crítica transversal. E submissão é a palavra que se encaixa. Isso aparece de maneira mais ou menos sutil quando Paulo decreta que a partir daquele momento estava chefiando o pequeno grupo, mesmo que as duas mulheres a quem chefiava tivessem muito mais experiência nas atividades. Não houve contestação, afinal, Paulo é homem. Mais direta é a referência feita na passagem em que precisam se hospedar em um hotel em São Paulo. Neste momento, a uma delas ele empresta o nome e ela vira a senhora Simões, e, por isso, não precisa se identificar. À outra o recepcionista do hotel pede a carteira de identidade, que obviamente ela não tinha, já que sequer fica claro no livro se o nome que usava era verdadeiro. Para resolver o problema, o escritor "abona" a ficha dela. 

O que é para uma mulher ter a sua ficha de identificação abonada por um homem? Vale dizer que até pouco tempo as mulheres não tinham sequer CPF e usavam o mesmo do marido. Avançamos perto de seis décadas e hoje a cena fica inimaginável. Conseguem pensar em um homem se prestando a liberar a ficha de hospedagem de uma mulher? Não, é claro que não. Entretanto, é normal, depois de todo esse tempo, o mais poderoso jornal do país mostrar surpresa e indignação pela esposa do presidente da república ter participação ativa na campanha da eleição e, mais do que isso, se achar no direito de determinar como deve se portar a "primeira-dama" a partir da posse do marido. O editorial d'O Globo de ontem é uma peça histórica, tão histórica quanto a "queima dos sutiãs". Tanto que vale a transcrição, obtida por via indireta, já que o conteúdo da folha só é acessível a assinantes e eu não o sou. Leiam, por favor:

Foi Rosângela Lula da Silva, a Janja, mulher do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, quem telefonou à senadora Simone Tebet depois do primeiro turno para colocá-la em contato com o marido, de modo a garantir apoio na campanha vitoriosa ao Planalto. “Não tenho nenhum papel de articulação política”, contou Janja em entrevista ao Fantástico. “Pode ter acontecido, mas não que tenha sido uma coisa planejada.” Em comparação com Michele Bolsonaro e cônjuges de outros candidatos, porém, Janja foi bem mais ativa politicamente. Escalou quem entrava em reuniões ou voos com o marido, participou de encontros reservados e nunca deixou de dar sua opinião quando quis. Recentemente, ganhou espaço na transição, com a missão de organizar a festa da posse.

A própria Janja se descreve como “propositiva”, alguém que será “uma soma” ao marido no futuro governo. Na entrevista ao Fantástico, falou em “ressignificar o conteúdo do que é ser primeira-dama” e se disse disposta a assumir um papel de articulação com a sociedade civil em pautas importantes, como violência contra as mulheres, garantia da alimentação ou racismo. Revelou buscar inspiração em nomes como Evita Perón e Michelle Obama.

Cada nova eleição traz de volta a questão antiga, ainda sem solução ideal: o poder concedido aos cônjuges dos candidatos eleitos. A História traz exemplos de quem manteve discrição, sem surfar na onda de popularidade levantada pelos detentores de mandato. Mas também de quem assumiu funções incompatíveis com as atribuições de alguém que não recebeu um só voto.

No primeiro grupo está Denis Thatcher. Nos 11 anos em que sua mulher Margaret esteve no poder no Reino Unido, ele se manteve alheio aos círculos do poder britânico. Ou Joachim Sauer, cujo nome é pouquíssimo conhecido fora da Alemanha — ele é o marido da ex-chanceler Angela Merkel, que governou por 16 anos. No extremo oposto está Hillary Clinton. Quando seu marido Bill assumiu o primeiro mandato nos Estados Unidos, em 1993, ela passou a ter uma sala na Ala Oeste da Casa Branca e foi responsável pelo projeto (fracassado) de mudanças na Saúde. Depois de eleita senadora, Hillary foi derrotada em duas tentativas de chegar à Presidência.

Formada em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná, Janja trabalhou por mais de 10 anos na Itaipu Binacional e por cinco na Eletrobras. Embora seja filiada ao PT desde 1983, não tem histórico de cargos eletivos nem de altos postos no partido. Seu currículo não parece justificar a influência que adquiriu na campanha.

Mulheres ou maridos de chefes do Executivo necessariamente passam por uma adaptação uma vez no poder. A eleição exige mudança de casa ou cidade, paciência com o olhar constante da imprensa, uma agenda infindável de reuniões, eventos e problemas a resolver. Igualmente desafiador é encontrar um papel a cumprir como primeira-dama ou primeiro-cavalheiro. O mais importante é sempre lembrar quem foi eleito para tomar decisões.

Quando falei que o editorial é uma peça histórica, quis dizer que no futuro ele poderá ser usado para identificar os traços de um tipo de gente que, se deus ajudar e o diabo não atrapalhar (ou vice-versa), estará extinta. Essa gente que acha que um homem tem mais competência e direitos do que uma mulher pelo simples fato de ter um pênis entre as pernas, algo que, a propósito, um dos personagens mais importantes do livro de Cony, homem e líder, não tem. Talvez essa seja a razão do ex-presidente ter uma fixação pela virilidade, chegando ao ponto de forrar as farmácias dos quartéis com comprimidos para evitar que os milicos brochem. Como disse o grande Bemvindo Siqueira, essa gente não aceita o protagonismo e o erotismo feminino da mulher de um presidente, mas aceita uma primeira-dama que receba dinheiro sem origem e tenha boa parte das mulheres da família envolvida com tráfico de drogas. Essa gente se recusa a fazer a travessia dos tempos, na linguagem metafórica do romance. 

No fundo, o que o editorial do jornal e a fala da Eliane Cantanhêde mostram é que Globo nunca deixou de ser a Globo, apenas se mascarou para defender os seus interesses, que fugiram do controle pela psicopatia do ex-presidente. Agora que a primeira etapa foi vencida e o Messias foi barrado, cabe a nós abandonarmos as ilusões quanto à casa dos marinhos, que esta, apesar das Flávias Oliveiras e dos Bemvindos Siqueiras, é a mesma rede mafiomidiática que foi entusiasta do Golpe de Primeiro de Abril e que se põe a pousar de humanista, democrática e libertária, mas que, na verdade, desde a sua fundação defende as mesmas pautas velhas e mofadas, centradas no machismo, no patriarcado, no racismo e em tudo aquilo que as forças progressistas devem combater diariamente. 

Ecoando o velho Brizola, Lula é o sapo barbudo que a extrema-direita vai ter que engolir outra vez. E numa versão pós-moderna das fábulas, Janja é a antítese da princesa recatada e do lar. Mas uma coisa nunca muda: por mais que se disfarce a Globo sempre será o escorpião

Imagem de destaque copiada de: https://www.brasildefato.com.br/2022/11/15/atuacao-politica-de-janja-motiva-ataques-misoginos-da-imprensa. ACesso em: 16 de nov. 2022.

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