Antítese e símbolo
Certa feita, por ocasião da inauguração de um famoso bar já extinto em Porto Alegre, então governador do estado, Olívio Dutra chegou ao local e, acompanhado de sua esposa, Judite, dirigiu-se à entrada VIP. O porteiro pediu identificação e ele disse que era Olívio Dutra, aposentado do Banrisul. O funcionário do bar orientou que ele entrasse na fila normal (a inauguração foi muito concorrida). E ele obedeceu, mas quando estava voltando, foi chamado novamente, porque alguém havia alertado o porteiro sobre quem era aquela pessoa. Dizem que ele ainda falou pro segurança, que apresentava as desculpas do bar, que ninguém tinha a obrigação de saber que ele era governador, bastando que soubesse o que o governador fazia pelo povo.
Não sei se a história aí de cima é verdadeira, mas sei que já tive a oportunidade de estar no mesmo ambiente que o Olívio em algumas ocasiões, em três ou quatro oportunidades até mesmo de conversar com ele, e posso dizer que é uma das pessoas públicas mais simples e humildes que conheço. E o homem é nada menos do que o prefeito que fez a Europa visitar Porto Alegre pra conhecer o Orçamento Participativo e o Fórum Social Mundial, enfrentou a máfia dos transportes urbanos, que anos depois voltou a triunfar num porto já não tão alegre, comprou briga com uma das maiores gigantes da indústria automobilística, ganhando o ódio eterno da máfia midiática, personalizada por um escroto radialista com cujo nome se pode fazer um trocadilho com merda, e, antes disso, além de tantas outras coisas, foi subscritor da Constituição Cidadã.
Na Banda Oriental, viveu outro homem público, que em uma entrevista ficou bastante incomodado quando o jornalista, com a melhor das boas intenções, lhe perguntou sobre o seu legado. E não ficou incomodado porque a pergunta fosse inconveniente, mas porque pra ele a luta é sempre coletiva. Pepe Mujica, que se foi ontem, passou a vida dizendo que não era um herói, que tudo o que fazia ele devia ao apoio dos companheiros e companheiras que estiveram com ele nos campos de batalha.
De fato, se pensarmos na imagem que a cultura ocidental criou do herói, veremos que homens como Olívio Dutra e Pepe Mujica não se enquadram no perfil, antes são a antítese da figura heroica. Só que justamente por suas ações e sua vida eles são o próprio símbolo do verdadeiro herói, o herói do povo. Porque precisamos de heróis. Heróis de verdade, heróis que andam entre os seus, que conversam e ouvem as mulheres e os homens a quem representam, heróis que enfrentam as lutas de peito aberto, sem medo das perseguições que levam à cadeia, à tortura, à execração pública, à morte. E quando morrem, esses homens viram heróis porque já não podem mais contestar quem assim os considera.
Pepe Mujica virou herói; que Olívio Dutra ainda demore para sê-lo, mas inspire a nós para que sejamos; que saibamos reconhecê-los como símbolos do verdadeiro heroísmo, da luta que nunca pode parar e que não pode ser travada solitariamente.
*Imagem de destaque: https://www.extraclasse.org.br/geral/2022/05/morte-de-judite-dutra-causa-comocao-e-solidariedade/. Acesso em 14/3/2025.
Comentários
Postar um comentário
Críticas, contrapontos, opiniões divergentes, debates etc. serão sempre bem-vindas. A pré-análise será feita apenas em face de questões éticas e legais.