Embora eu seja um apaixonado torcedor do Inter, o futebol raramente aparece por aqui, e como tema principal acho que nunca esteve. Minhas ideias sobre futebol estão em outro lugar: https://interdetodos.blogspot.com/.
Abro uma exceção porque o tema transcende o mundo da bola.
Fui conselheiro do Inter por cerca de 10 anos, eleito com muito orgulho pelo movimento O Povo do Clube, do qual já não fazia mais parte quando encerrei a minha participação efetiva na política do Inter. Junto com algumas companheiras e alguns companheiros de grande valor, pessoas que, algumas delas, se tornaram grandes amigas minhas, ajudei a fazer história no Inter e no futebol de modo geral. Subvertemos velhas fórmulas de poder e criamos paradigmas que ainda entortam muitas cabeças conservadoras no ambiente político do futebol.
Hoje assisto, com um misto de tristeza e revolta, a capitulação do grupo politico mais PHoDa da história do país do futebol, comparável no Brasil apenas à Democracia Corinthiana, como dito aqui.
O Povo do Clube hoje é poder. E a opção por usar o verbo ser em vez do verbo estar se explica pela força que fizeram as lideranças do movimento para chegar nesse ponto, mas, principalmente pelos métodos que usaram. Rasgaram sem nenhum pudor as bandeiras mais bonitas do movimento; traíram sem nenhum remorso o povo que fez o Inter e fez o próprio Povo do Clube. Não vou fazer neste momento o necessário resgate histórico para explicar essas minhas afirmações porque tornaria este escrito por demais extenso para os modernos padrões de leitura. Vou me restringir apenas ao debate do momento, que é a possibilidade/probabilidade do aumento do valor das mensalidades sociais do Inter.
Começo trazendo à lembrança o posicionamento da segunda maior liderança do Povo do Clube quando o aumento foi proposto em ocasião anterior:
acervo do autor
Imagino ser desnecessário dizer que quando desta manifestação, postada nas redes digitais do movimento, o PdC não era gestão.
Agora transcrevo frases ditas por uma liderança do movimento em reunião realizada esta semana:
"Tem que ultrapassar essa coisa, esse tabu de que nós representamos os miseráveis e vamos protegê-los de dois reais na mensalidade..."
Chico Buarque talvez se perguntasse quando foi que quem brincava de princesa acostumou na fantasia.
Na sequência da fala, há algo ainda mais impactante:
"... gente, as pessoas vêm aqui e racham o cu bebendo!"
Não sou o Chico, mas me pergunto: quando foi que beber no entorno do Beira-Rio virou coisa feia e reprovável para o (autoproclamado) movimento da torcida colorada?
Em debates políticos, estigmatizar comportamentos populares faz parte do padrão discursivo do conservadorismo elitista e reacionário. Beber antes do jogo é prática comum de boa parte das pessoas que frequentam o estádio de futebol, e o próprio PdC, quando ainda era digno desse nome, já se insurgiu de forma veemente contra a proibição da venda de bebidas alcoólicas dentro dos estádios. Ou os fabricantes aumentaram consideravelmente a graduação alcoólica das bebidas a ponto de "rachar o cu bebendo" se transformar num problema de saúde pública, ou apenas o discurso mudou, porque, pelas palavras do/a integrante do movimento, beber é algo tão grave que justifica o aumento do valor das mensalidades. Quem sabe se aumentando o valor da mensalidade o povo para de... rachar o cu bebendo, né?!
Infelizmente, a retórica oportunista e altamente elitizada incorporada por quem antes vibrava no cimento e agora assiste no camarote não para por aí. Os caras não são novatos na política, sabem falar em línguas que agradam a todos os públicos. Se a liderança antes citada não se preocupou em vociferar um discurso carregado de preconceito e veneno contra o povo, outra/o dirigente do movimento, na velha prática do "bate a assopra", foi mais comedido e trouxe a linguagem a um padrão menos agressivo:
"... o aumento sugerido não é um latão vendido por ambulante aqui no dia de jogo... será que a gente apresentando pra torcida: 'olha, tu aceitaria pagar um pouco menos de um latão, de um latão que se vende aqui na frente do Beira-Rio, sendo que esse valor vai dar pro o clube num total vinte milhões a mais em 2025 ... e ajudar um pouquinho a sair do sufoco?"
Quem gosta da Análise do Discurso, Semiologia e outras ciências afins tem um prato cheio pra analisar a partir desses breves trechos de falas das chefias do PdC. Nos últimos anos estamos vendo no Brasil como pode ser deletéria a atuação de um grupo político que sequestra o discurso popular, manipula a informação e vende uma ideia totalmente distorcida daquilo que de fato está acontecendo nos círculos do poder. De onde foram tirados esses dados que dizem que o aumento equivalente a um latão de cerveja vai aportar nos cofres do Inter 20 milhões no ano? O Inter tem arrecadado muito nesses dois últimos anos. O problema é como esses valores estão sendo gerenciados. Talvez fosse o caso da gestão, antes de pensar em aumentar o valor das mensalidades, prejudicando ainda mais o já tão sofrido povo torcedor, começar a fazer planejamentos financeiros realmente adequados às necessidades do clube. Se fizermos uma avaliação criteriosa dos montantes empregados em contratações e pagamentos de salários aos jogadores do grupo profissional desde a primeira gestão Barcellos, certamente encontraremos equívocos que oneraram muito as finanças, mas cujo resultado foi pífio (sem trocadilhos), já que estamos há oito anos sem conquistar nenhum título, acumulando derrotas vexatórias para times inexpressivos, e há três anos sem sequer chegar à decisão final do campeonato gaúcho, abrindo chance para o Grêmio igualar a marca histórica do "time que nunca perdeu", como definiu com muita propriedade o maior deles, Paulo Roberto Falcão. Bons times trazem títulos, trazem a torcida de volta ao estádio, aumentam os quadros associativos e, com isso, aumentam muito a arrecadação. Cometer erros de avaliação em contratações faz parte da gestão do futebol, o problema está quando essas decisões questionáveis se tornam muito frequentes e a conta do prejuízo é transferida à torcida, principalmente quando vem mascarada por um discurso apelativo, repleto de frase feitas e conceitos discriminatórios, como dizer que alguém pode evitar "rachar o cu bebendo" para aumentar alguns poucos (ou nem tanto) reais na mensalidade. Ainda mais quando esses dados são empíricos ou menos que isso, porque não aparecem acompanhados de nenhum estudo, planilha, tabela ou qualquer argumento sólido que lhes dê suporte.
Entretanto, aquele que um dia foi de fato o movimento da torcida colorada, teve suas lideranças mordidas pela mosca azul (de novo sem trocadilhos) e optou pelo caminho mais curto e certamente mais lucrativo (lucrativo em sentido político, por óbvio).
Essa é a breve história de como o latão virou índice econômico. Ou de como o povo que fez o Inter foi traído.
¹Título criado com a colaboração do Marcelo Cougo.
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