Sei até que parece sério...


 

Nos anos 80, o Brasil começava a botar a cara pra fora, tentando ver a luz do dia depois de mais de duas décadas passadas dentro do poço escuro dos anos de chumbo. Raulzito e Marceleza diziam que até parecia sério, mas era tudo armação. Algumas décadas depois, uma das figuras mais influentes da política brasileira traduziu em estratégia de sobrevivência a crítica social em forma de música feita pelos os putos brothers da Panela do Diabo. Ao dizer que era necessário um grande acordo nacional, com Supremo com tudo, Romero Jucá antecipava o que aconteceria logo adiante, com a derrubada de uma presidenta legitimamente eleita, em face de um crime que logo após ser usado para tirá-la do governo deixou de ser crime. E mesmo no tempo em que supostamente foi tipificado, ninguém foi impitmado por isso. Engana-se quem pensa que não houve participação da esquerda no golpe. Basta lembrar o apoio de partidos como o PSol e, mais ainda, o fato de Dilma ter sido afastada da presidência sem ter perdido os direitos políticos, como determinam as normas do impeachment. Vencida formalmente a discussão em torno da existência ou não de golpe, as regras constitucionais deveriam ter sido aplicadas. Tudo dentro das 4 linhas, enfim. Parece claro que tudo estava no acordo, assim com também estava tudo no acordo do impeachment anterior, de Fernando Collor, quando o PGR de plantão "deu bobeira" e o corrupto não só não foi pra cadeia como voltou à cena política anos depois pelos braços do povo. E a cada revisitação da história do país que começou num engodo, quando os portugueses queriam chegar nas Índias Orientais e uma ventania fez com dessem na costa da terra em que se plantando tudo nasce, se vê que a história deste país é construída golpe após golpe, sem trégua. 

Neste momento, estamos na iminência de um novo golpe. Jair Bolsonaro não será preso. Na verdade, talvez o roteiro desta nova peça tragicômica inclua uma passagem rápida pela cadeia, mas apenas para justificar a atuação das instituições republicanas. Como em todo script golpista, algumas pessoas pagam a conta, e os patriotários da frente dos quartéis são os bois de piranha da vez, mas os chefes da máfia estão aí e aí vão ficar. 

Paulo Gonet, a autoridade mais poderosa da república, já apontou a possibilidade de apresentar uma denúncia única contra Jair Bolsonaro, unificando todos os inquéritos, mesmo que eles tratem de crimes e circunstâncias distintas. O primeiro inconveniente dessa decisão será a demora. Considerando que a cada dia fatos novos chegam ao conhecimento público e que cada notícia enseja mais uma mexida na investigação, quando estará de fato tudo pronto para fazer o genocida passar de indiciado a réu? Há poucos meses o PGR decidiu sentar nos processos para não interferir nas eleições municipais e eventualmente prejudicar candidatos bolsonaristas. Insisto em perguntar onde fica o princípio iluminista adotado pela república brasileira da repartição de poderes? Ademais, um ano passa rapidinho, logo em seguida estaremos perto das próximas eleições. Se Gonet foi extremamente cauteloso nas eleições municipais, é de se esperar que em 2026 ele se esconda debaixo da cama para não ser obrigado a tomar decisões que possam complicar a vida dos bolsonaristas. 

Agora vejamos o que realmente é mais grave nisso tudo, a partir de afirmações recentes do futuro presidente da Seccional de São Paulo da  Ordem dos Advogados do Brasil, a maior do país. Para Leonardo Sica, não há motivos para a prisão de Bolsonaro, já que ele não tem ainda nenhuma condenação e não apresenta risco à ordem pública ou ao próprio processo. Não foi o próprio Jair Bolsonaro quem disse que não afasta a possibilidade de pedir asilo em alguma embaixada caso corra risco verdadeiro de ser preso? Por outro lado, na última sexta-feira, dia 6/12, o inelegível Bolsonaro deu entrevista à rádio Gaúcha, emissora afiliada da rede Globo e que detém os maiores índices de audiência no Rio Grande do Sul, além de atingir um público que se espalha por todo o mundo pelas transmissões via internet. Falou barbaridades, entre elas ataques violentos ao STF e a Alexandre de Moraes. João Cezar Castro Rocha, um dos grandes estudiosos da extrema direita transnacional, diz que um dos pilares da estratégia retórica bolsonarista é manter a militância em permanente estado de excitação. Ora, existe melhor maneira de manter o exército alerta do que o próprio messias andar falando às massas a qualquer hora?

Sica, porém, vai mais longe, e aqui é que mora o perigo mesmo: 

"O presidente eleito da OAB-SP ainda comparou os casos de 8 de janeiro com o Mensalão do PT e a Lava Jato, que tiveram várias decisões anuladas. 'A gente já viu acontecer isso uma vez. No começo da Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal estava validando tudo o que acontecia. De repente, houve uma ou outra mudança de composição de turma do próprio Supremo e o Supremo passou a invalidar algo que vinha validando. Então, sim, a gente corre o mesmo risco', pontuou Sica."

O simples fato de comparar o lavajatismo a qualquer outro processo judiciário no Brasil já mostra quem é o sujeito. Se fosse eu a dizer isso, que se lixe, quem se interessa pelo que eu digo? Mas o cara vai presidir a entidade de classe mais poderosa do país. Será que o pensamento dele não repercute nos meios políticos e institucionais? Ainda pior: será que esse pensamento dele já não é fruto do que se discute nos círculos letrados do direito? 

Essa conversa pode ser desenvolvida de forma muito mais ampla adiante, mas neste momento acho que basta isso para mostrar que a eleição de Lula não resolveu os problemas do Brasil. E já que começamos com música, terminemos da mesma forma: 

Dormia 

a nossa pátria mãe tão distraída, 

sem perceber que era subtraída 

em tenebrosas transações

*Imagem de destaque: https://veja.abril.com.br/coluna/radar/como-paulo-gonet-vai-tratar-as-investigacoes-contra-jair-bolsonaro-na-pgr. Acesso em 12/12/2024.

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