A marmota, a morsa e as Fernandas
Meu assunto aqui é quase sempre política, mas às vezes faço algumas concessões para tratar de coisas outras. Hoje, por exemplo, quero falar de filmes. Três filmes.
Em 1993, Andie MacDowell e Bill Murray estrelaram um filme despretensioso, mas que de tão bonito virou clássico: "Feitiço do tempo", dirigido por Harold Ramis. Só pela dupla de estrelas já valeria ver o filme, mas a história é muito legal e pode propor, a quem estiver interessado nisso, algumas reflexões importantes sobre a vida e, obviamente, o tempo.
Uma década depois, em 2004, Drew Barrymore e Adam Sandler, outra excelente parelha (sim, há controvérsias, mas eu gosto), viveram um casal improvável em "Como se fosse a primeira vez", de Peter Segal, com a luxuosa participação de Dan Aykroyd na trama.
Ambos os filmes giram em torno de uma situação irreal em que um determinado dia sempre se repete. No caso de Feitiço do tempo, é a história do festival da marmota, que acontece na vida real a cada 2 de fevereiro na Pensilvânia, quando a aparição ou não do bichinho determina como será o verão. Em Como se fosse a primeira vez, a protagonista sofre um acidente que provoca um tipo de amnésia que faz com que ela acorde sempre como se estivesse no dia em que sofreu o trauma.
O terceiro filme é bem mais recente e infinitamente mais denso. Trata também de memória, mas desta vez de preservação e não de perda. "Ainda estou aqui" recupera o episódio do assassinato de Rubens Paiva pelo exército, em 1971, a partir da ótica da família, especialmente de sua esposa, Eunice, vivida de forma magistral pelas Fernandas, Torres e Montenegro. Este filme, e a atuação de filha e mãe, merecem uma crônica à parte, e penso em escrevê-la, porque é um dos momentos altos do cinema brasileiro e mundial. Não preciso falar da filmografia de Walter Salles, que é um grande diretor, mas Ainda estou aqui deve ser visto por todas as pessoas que querem entender um pouquinho melhor o Brasil e os perigos a que estamos submetidos permanentemente por conta da omissão das nossas instituições. Ou simplesmente pela oportunidade de ver em ação duas das maiores atrizes da história da dramaturgia brasileira.
"entender um pouquinho melhor o Brasil e os perigos a que estamos submetidos permanentemente por conta da omissão das nossas instituições" - "Putz... vai derivar para a política?" Sim, vai/vou. Mesmo virginiano convicto, minha natureza de escorpião é inescapável. Antes, porém, uma última sugestão de filme: "Argentina, 1985". E deste não digo nada além de: assistam!
A questão inevitável aqui é que, ao contrário do que acontece no país de Ricardo Darín, o Brasil não costuma curar as suas feridas e, em termos de memória, o apagamento é sempre a prática. Anistia é uma palavra que assusta na língua portuguesa, porque se amplia o sentido para incluir a ideia de esquecimento. Talvez os novos dicionaristas precisem rever as suas acepções para incluir um sentido extra: garantia de impunidade para golpistas.
Tendo passado por uma anistia que livrou a cara de assassinos e torturadores, imaginou-se que as coisas seriam ajustadas e o país se reconciliaria na medida do possível com o passado a partir da instalação da Comissão da Verdade. A presidenta Dilma Rousseff, que sofreu violentamente no próprio corpo - e na alma, por certo - os efeitos da linha dura, instituiu a comissão no final de 2011, a qual teve seus trabalhos iniciados em 2012 e se estendeu até 2014. O relatório final responsabiliza (só) 377 agentes de estado por crimes contras os direitos humanos. Sequestros, torturas físicas e psicológicas, assassinatos, desaparecimentos, estupros e violências sexuais, ocultação de cadáveres e muito mais estão no cardápio dos bandidos. Para decepção de Jair Bolsonaro, "apenas" 434 pessoas foram identificadas como mortas ou desaparecidas pela ação dos gorilas da caserna e seus asseclas (sem desrespeito aos queridos primatas, que não merecem essa analogia, mas apenas para recuperar um termo utilizado pela resistência da época). Ninguém duvida que foram muitas mais, até mesmo que tenham chegado às 30 mil que o genocida sugeriu. Nos trabalhos da CV, até o símbolo mais abjeto da tortura, ídolo maior dos bolsonaros, Carlos Alberto Brilhante Ustra, foi ouvido. Quem tiver fígado pode ver o descaramento do assassino e comprovar que a tática incorporada pelo seu pupilo de alegar que tudo foi feito dentro da lei e da ordem, ou nas 4 linhas da constituição, na adaptação tosca de Jair, não é nova: https://www.youtube.com/watch?v=1WeaWDDQNQg. Mas o que restou desse processo?
Importa aqui saber qual o alcance da palavra "responsabilização", usada no relatório da comissão. Infelizmente é curto, curtíssimo. Os criminosos continuam por aqui e, respaldados pela certeza que o crime compensa, tramando novos golpes. E aqui está o perigo de acordarmos sempre no mesmo dia.
Há um consenso que não haverá como o Procurador-Geral da República, ainda que possa ser de sua vontade, não apresentar a denúncia contra Jair Bolsonaro e os generais, além dos outros indiciados pela Polícia Federal. Vamos dar como certo que a denúncia será apresentada e, por óbvio, que será recebida pelo STF. Quem conhece o direito penal sabe que para operadores experientes, e o PGR evidentemente se enquadra nesse conceito, não é difícil manejar uma peça processual, neste caso a denúncia, de maneira que ela tenha uma boa aparência mas que no mérito seja superficial e até mesmo vazia. De forma nenhuma estou afirmando que Paulo Gonet adotará esse expediente, apenas trazendo essa possibilidade como uma das hipóteses de "acordarmos no mesmo dia". (Sobre isso, sugiro que busquem informações sobre a atuação de Aristides Junqueira, que era o PGR no tempo do impeachment de Fernando Collor.) Outro ponto importante a ser considerado é o que se tem chamado de tempo da justiça, que muitas vezes vai de encontro ao tempo da política. O próprio PGR fez essa relação ao dizer que não tomaria nenhuma medida em relação aos inquéritos que envolvem Jair Bolsonaro antes das eleições municipais para não incorrer no risco de interferir nas campanhas de candidatos vinculados ao bolsonarismo Brasil adentro. Agora, outra vez ocorre situação parecida, porque se diz que a denúncia, dada como certa, não será encaminhada antes de fevereiro. Por quê? Natal, reveillon, férias, recesso forense, carnaval, o que mais? De novo é o tempo da justiça atravessado por tempos outros.
Pensando ainda na questão do tempo, não podemos deixar de lado o fato da sucessão na Casa Branca. Os analistas sérios sabem que o golpe de Bolsonaro não foi levado em frente unicamente porque não teve apoio dos EUA. Essa conversa de generais e militares legalistas que resistiram ao golpe é risível. Tivessem de fato a intenção de garantir a manutenção da lei e da ordem constitucional, teriam dado voz de prisão imediata não só a Jair Bolsonaro como a todos os chefes golpistas. Além, é claro, de tomar medidas para acabar com a esculhambação na frente dos quartéis. Sem apoio da CIA, e sem uma reedição da Operação Condor, oficiais menos lunáticos e que prezam minimamente as suas carreiras, nunca iriam aderir à aventura golpista. Mas com o fascista Donald Trump à testa do país mais influente do planeta, essa postura se manterá? Os interesses estadunidenses - leia-se como nota de rodapé, Elon Musk, lítio, reservas naturais etc. - não falarão mais alto nesse momento? No limite, essa lentidão das instituições não estará no escopo da retomada de um grande acordão, com Supremo com tudo, a fim de que se ganhe tempo enquanto se articula a (argh!) anistia para os criminosos golpistas no Congresso? Lembremos da lição do Velho Marx no 18 Brumário. A conjuntura política, que hoje parece se apresentar desfavorável a um projeto de anistia ampla, geral e irrestrita, não vai se alterar sensivelmente com a posse de Trump? Será que Bolsonaro é tão cognitivamente limitado e descolado da realidade a ponto de manter a aparente tranquilidade diante tudo o que se apresenta contra ele? Ou estará confiante no "trabalho das instituições republicanas"? Recentemente, talvez de ontem pra hoje, Jair sugeriu a possibilidade de se refugiar em alguma embaixada, caso a "perseguição" que está sofrendo se recrudesça. Já não vimos isso antes?
Vou insistir uma vez mais em algo que está se transformando em lugar comum aqui nesses escritos: é preciso que o povo desperte da letargia provocada pela eleição de Lula e vá às ruas para deter a marcha fascista, que está longe de se extinguir por si própria, sob pena de, ao despertar desse sono, perceber que está no mesmo dia. 1968 precisa terminar!
*Imagem de destaque: acervo do autor.
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