A Índia é aqui. Desde 1550. Ou: ajude o juizinho a comer seu caviar


 

O Brasil é um país permanentemente à beira de uma ditadura. Hoje sabemos que o primeiro golpe foi dado em 1500. As gerações passadas, a minha, por exemplo, "aprenderam" na escola que os portugueses aqui deram por acaso, por uma ação do destino, já que o objetivo era chegar às Índias orientais. Depois disso, tudo o que aconteceu durante o período colonial e no império dos Pedros só aconteceu mediante negociatas, transações obscuras, influências externas etc. A república, já é lugar comum dizê-lo, foi instaurada a partir de uma quartelada. Século 20 adentro e afora, golpe após golpe, foi sendo constituída a nossa nação. Isso é História. 

Quem, nessa história golpista, sempre esteve acima da linha do equador, no norte global brasileiro? Em primeiro lugar, por óbvio o povo da caserna. Esses estão sempre na vanguarda do reacionarismo. Há, porém, outra classe, que em regra veste as roupas bonitas dos defensores da garantia do estado democrático de direito, mas que é no mínimo assistente de luxo dos piores momentos da nossa história. Me refiro à magistratura e ao ministério público. Convido-os a pensar um pouco sobre isso.

Não vou retroceder no tempo para resgatar a história pré-bolsonaro presidente. Fiquemos no período da ditadura bolsonarista e nos meses imediatamente anteriores. Quais os personagens públicos mais importantes dessa época? Os dois líderes máximos da república de Curitiba, Deltan Dallagnol e Sérgio Moro, que foram conhecidos em algum momento e em  algum círculo como os filhos de januário. Tudo o que esses doutos operadores do direito fizeram e deixaram de fazer está registrado em matérias da imprensa e em livros, até mesmo em filmes, os quais existem para todos os gostos, desde aqueles que incensam o grupo como os salvadores da pátria, até retratos mais realistas, que mostram como eles integraram um grande esquema que acabou por levar Jair Bolsonaro ao Planalto. 

Ultrapassado este primeiro momento, com Jair Messias eleito pelo voto - importante que se destaque isso para que não se leve livre a responsabilidade de boa parte do povo brasileiro por essa desgraça -, os de Curitiba passam a figurar no segundo escalão de importância na plataforma neofascista e dão lugar a outra autoridade: Antônio Augusto Brandão de Aras, o homem que quando nomeado Procurador-Geral da República teve a sua indicação duramente criticada pelo mundo bolsonarista, que o considerava afinado com ideias esquerdistas. Durante o governo de Aras, Bolsonaro foi blindado e, mesmo que tenha sido apontado como criminoso pela CPI da Covid, não foi importunado. Essa situação se perdurou durante praticamente todo o primeiro ano do governo Lula, até que o presidente acordou do sono pesado e anunciou quem seria o "seu" PGR. Paulo Gustavo Gonet Branco, muito conservador e muito católico, já há alguns meses tem elementos muito mais do que suficientes para denunciar Jair Bolsonaro e seu exército, filhos inclusos, mas sempre arruma uma desculpa para não fazê-lo, mesmo que ela beire o mais completo absurdo, como não prejudicar políticos bolsonaristas durante as eleições municipais de 2024 (o princípio iluminista que estrutura a divisão de poderes da república foi solenemente encaminhado ao brejo).

Dito isso, sabendo que as pessoas mais importantes da república estão nas instituições judiciárias, peço que leiam a matéria lincada a seguir:

https://sintrajufe.org.br/em-128-segundos-cjf-aprova-retroatividade-de-licenca-compensatoria-para-juizes-sintrajufe-rs-convoca-ato-nesta-quarta-feira-27/?_wem_rev_track=2aa5a71c-a7cd-4fbe-baea-ce6205777aba%3Ae0d3c9c0-deb5-4b32-9b33-63ff81251e2a

Para facilitar, vou destacar alguns trechos da matéria:

"Em 128 segundos, CJF aprova retroatividade de licença compensatória para juízes"

"A decisão, tomada por unanimidade em apenas 128 segundos de discussão, poderá render mais de R$ 100 mil aos magistrados e magistradas da Justiça Federal que fazem jus à licença (...)"

"Por se tratar de pagamento de natureza indenizatória, não incide imposto de renda ou qualquer desconto previdenciário." (grifos meus)

"Considerando-se o subsídio básico de um juiz federal, no valor de R$ 35.710,46 e fazendo uma projeção simples, esses dez dias de folga podem ser revertidos em cerca de R$ 12 mil para cada beneficiário."

"A licença compensatória é apenas uma de diversas autoconcessões que vêm sendo aprovadas pela magistratura nos últimos meses (...)"

Esta última frase aponta para uma questão muito importante. A Lei Complementar nº 35/1979, chamada Lei Orgânica da Magistratura Nacional - LOMAN, define no seu artigo 66 que os magistrados terão 60 (SESSENTA) DIAS DE FÉRIAS POR ANO. Poderia ir mais longe, mas fico por aqui nas "garantias" de suas santidades, ops, excelências, para não tornar por demais excessiva a leitura do texto. As normas da Loman foram praticamente replicadas na Lei Complementar 75/1993, que organiza e disciplina o ministério público (as férias estão no artigo 220). 

Paralelamente, as carreiras de servidores do judiciário e do ministério público, vêm sendo atacadas e sucateadas violentamente nas últimas décadas. A implementação de um direito de servidores, costuma levar mais de 128 meses - meses, não segundos - em tramitação em processos judicias e, quando finalmente é reconhecido, o pagamento é protelado e muitas vezes nem é feito, por indisponibilidade orçamentária. Fora isso, a natureza dos pagamentos, quando ocorrem, sempre é salarial, sobre o que incidem todos os impostos devidos. Ora, isso é muito fácil de explicar: a grana tem que ser reservada para os "direitos" de suas eminências, ops, excelências. 

Quem conseguiu trazer essa leitura até aqui e que não seja servidor público, especialmente da área judiciária, deve estar se perguntando: o que eu tenho a ver com isso? Explico. As decisões de juízes e membros do MP definem praticamente tudo o que acontece na sua vida, como por exemplo o reconhecimento de que as regras da reforma que EXTERMINOU OS DIREITOS TRABALHISTAS NO BRASIL, se aplicam a contratos de trabalho anteriores à própria reforma. Ou seja, os eminentes julgadores, que recebem mensalmente vencimentos não inferiores a 30 mil reais, e que a cada final de ano ganham uma contribuiçãozinha extra para os presentinhos de natal e as férias, que, como se viu, têm 60 dias, resolveram que os trabalhadores e trabalhadoras devem não somente ver os seus direitos destruídos, como essa destruição deve retroagir no tempo. Isso e muito mais (ou muito menos) é o que fazem nos gabinetes climatizados dos prédios dos tribunais ou na piscina dos resorts de luxo em que vão gastar o suado dinheirinho das férias e folgas. (Caso queiram, em outro momento podemos comparar as instalações de um prédio do judiciário ou do MP com as de um hospital público, de um posto de saúde, de uma escola estadual.)

Nossos juízes e promotores não são necessariamente parentes do Juquinha Chaves, mas também têm direito ao seu caviar. Ninguém é de ferro.

Urge que o povo tome conhecimento disso e não caia mais no discurso batido, mas sempre atualizado, que os servidores públicos são marajás, que ganham salários gordos e têm benefícios vergonhosos. Não!!!! A grande maioria das pessoas que prestam concurso (em vias de extinção, a propósito) e que garantem o funcionamento das instituições republicanas, vive em condições que se não são indignas e são melhores do que grande parte da população, estão longe de ser luxuosas, e que de forma nenhuma correspondem à responsabilidade que têm. Enquanto isso, os novos milionários do país estão no judiciário e no ministério público, que cada vez mais implementam no Brasil um sistema de castas semelhante ao que existe na Índia. Com a diferença que aqui essa estratificação social não têm raízes (questionáveis) filosóficas ou religiosas. 

*Imagem de destaque: https://asmetro.org.br/portalsn/2022/07/16/novo-penduricalho-no-mp-e-incentivo-a-incompetencia-diz-especialista-em-gestao-publica/. Acesso em 27/11/2024.


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