O prefeito saudosista


 

Quem foi criança em Porto Alegre no começo dos anos 1980 e viveu numa casa que tivesse TV, algo não muito comum naqueles tempos pré-streamings etc., deve se lembrar de um programa infantil veiculado pela extinta TV Guaíba, que operava no canal 2. O Guaíba Criança era apresentado por um personagem esquisitão e atrapalhado, inspirado provavelmente no clássico Garibaldo, da Família Sésamo, e que distribuía quindins para a criançada no programa. 

Essa foi mais ou menos a época em que chegou a Porto Alegre um sujeito vindo de Goiás, da cidade de Piracanjuba, Sebastião de Araújo Melo, que algumas décadas depois viria a ser eleito prefeito da cidade, em vias de alcançar a reeleição. 

Talvez essa consonância de períodos (Melo chegou aqui em 1978 e o Guaíba Criança estreou no tubo em 1981) tenha criado uma certo fetiche do prefeito pelo simpático personagem. Há ainda a possibilidade do prefeito ser admirador de histórias de terror (a maneira como administra a cidade aponta para isso) e muito fã do Frankenstein, de Mary Shelley, que como se sabe, é um monstro criado a partir de remendos de cadáveres. Não sei, são hipóteses, mas que o Chinelão do Povo adora um remendo, já não há nenhuma dúvida. 

Melo é um romântico saudosista, que não mediu esforços para levar Porto Alegre novamente à capa dos noticiários mundiais. Talvez, para isso, o prefeito pudesse ter retomado e aperfeiçoado antigas políticas que transformaram a capital do Rio Grande do Sul numa cidade referência há alguns anos. Orçamento Participativo, Descentralização da Cultura, Fórum Social Mundial, tudo isso trouxe delegações de países do "primeiro mundo" até o sul do Brasil para estudar os avanços civilizatórios que as administrações verdadeiramente populares implementaram por aqui. Em vez disso, Sebastião parece ter escolhido o episódio mais trágico da história da cidade para relembrar os tempos idos. 

Ao mesmo tempo em que os eventos climáticos têm se tornado cada vez mais intensos e violentos, pelo negacionismo de gente como Sebastião Melo e seus ídolos nazifascistas do bolsonarismo, a ciência e a tecnologia avançam. Assim, é evidente que a desgraça causada pelas enchentes de 2024 poderia ter sido muito minimizada, caso a prefeitura tivesse feito o que deveria, inclusive alertada por especialistas. 

Diante de tudo isso, parece que a população porto-alegrense, boa parte dela, desenvolveu uma espécie de síndrome de Estocolmo, que causa uma estranhíssima simpatia da vítima pelo seu algoz. Como explicar de outra maneira que um governante responsável direto por deixar a cidade literalmente debaixo d'água por quase um mês, cujo governo é marcado pelos mais graves episódios de corrupção da história da cidade, tenha sido quase reeleito em primeiro turno e esteja na iminência de vencer o pleito no próximo domingo? 

Contrariando uma prática deste blog, vou adicionar aqui debaixo algumas fotos que fiz ontem (24/10/2024) no chamado Centro Histórico, mas que também poderia ser chamado de Remendão do Melo. 








Essa é a tão propagandeada revitalização do centro. Uma obra que já dura pelo menos um ano além do prazo e cujo orçamento já foi estourado e re-estourado muitas vezes. 

Poderia falar, também, na entrega da cidade ao empresariado (Melnick, Zaffari etc.), que não deixa pedra sobre pedra, ou melhor, árvore sobre árvore. Ou quem sabe na roubalheira que levou a secretaria da (des)educação do prefeito à cadeia. Mas isso é assunto que parece interessar a pouca gente. 

Ainda há tempo para que as pessoas que vivem na (ex) Cidade Sorriso pensem no que querem para os próximos quatro anos, mas, apenas por precaução, sugiro ao prefeito que troque o chapéu de palha por um escafandro. 

*Imagem de destaque: https://www.threads.net/@anymoraespoa/post/C-bYt-GOfX_. Acesso em 25/10/2024.


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