Conversa pra boi votar



 Uma boa parte da esquerda brasileira abomina o que ela convencionou chamar de "pautas identitárias". Para essas pessoas, mais ortodoxas no marxismo do que o freudianismo do Analista de Bagé, a importância demasiada (mi-mi-mi, segundo elas) dada ao combate ao racismo, à lgbtfobia, à misoginia e a outras formas de discriminação confunde e pulveriza as lutas e desvia a atenção do que deveria ser a pauta única: o combate ao capitalismo. Algumas dessas pessoas vão mais longe e dizem que as causas identitárias foram sequestradas pela burguesia capitalista e se tornaram uma espécie de fogo amigo (ou nem tanto) dentro da esquerda. Esse é um debate complexo, que não me interessa aprofundar agora. Mas é importante tomar um aspecto da discussão para tentar entender o que está acontecendo hoje na eleição municipal mais importante do país, que vai determinar o que acontecerá na eleição presidencial de 2026.

Obviamente a compreensão da campanha municipal de São Paulo passa necessariamente pela aceitação da falência e do aparelhamento das instituições republicanas brasileiras. Não há nenhuma justificativa que possa ser dada, à luz do ordenamento jurídico, para explicar o motivo da inércia da justiça eleitoral frente à produção industrial de irregularidades eleitorais e crimes cometidos pelo candidato bolsonarista Pablo Marçal. Como uma espécie de James Bond da vida real, esse sujeito parece ter licença para qualquer coisa, até para matar. Mas quando se sabe que o Procurador-Geral da República resolve sentar sobre o processo do Golpe de 8 de Janeiro até o fim das eleições municipais para não prejudicar os candidatos bolsonaristas pelo país, a (falta de) de atuação da justiça frente ao criminoso bolsonarista (apenas mais um...) dispensa maiores análises. 

Entretanto, há um fenômeno ainda mais intrigante do que a pasmaceira, que muitas vezes se confunde com ativismo pró-extrema direita, das instituições judiciárias. Como explicar que diante de tudo o que faz, o ex-coach aumente os índices nas pesquisas de intenção de votos e ameace seriamente a presença de Guilherme Boulos no segundo turno do pleito paulistano? Minha hipótese principal é que agrada muito a um certo perfil do eleitorado - que não é nada pequeno, porque quase reelegeu o Messias genocida em 2022 - o ataque direto a grupos sociais historicamente alvejados pelo preconceito e pela violência. Nesse sentido, creditar a eleição de Bolsonaro em 2018 ao antipetismo é um grande erro de análise política, que foi comprado por boa parte da esquerda. Por mais que alguém quisesse evitar a volta do PT ao governo central naquela eleição, o voto em Bolsonaro denuncia um maior ou menor grau de simpatia com o discurso do líder da família-franquia. Seja pela cantilena da segurança, expressa pela máxima "bandido bom é bandido morto", seja pela suposta espontaneidade de fazer piadas racistas e homofóbicas, qualquer que seja o traço do Mito que agrade, todo eleitor e toda eleitora de Bolsonaro tem alguma identificação com o discurso violento da extrema direita. 

Pablo Marçal é um bolsonaro que sabe trabalhar em redes sociais. E ele sim, querendo nós ou não, é um outsider, um cara de fora do sistema, que pode dizer/mentir com muito grau de convencimento que não tem compromisso com as práticas políticas tradicionais, mesmo que tudo o que faz e diz esteja profundamente enraizado no que existe de mais reacionário e estruturalmente constitutivo da excludente sociedade brasileira se construiu ao longo dos tempos. Acontece que, ao contrário dos bolsonaros, este outro bandido não fez a vida atuando na política institucional. O fato de ter trilhado outros caminhos pelo mundo do crime não importa a esse eleitorado, que apenas acha lindo que a toda hora ele diga que os outros candidatos não são homens para isso e aquilo, ou que a outra candidata não vai ter votos de mulheres porque elas não são burras. Lembremos que o chefe do clã bolsonaro se elegeu presidente da república apesar (e talvez mesmo por isso) de ter comparado pessoas negras a bois, dito que preferia um filho morto do que homossexual, que há mulheres que não merecem ser estupradas porque são feias etc. etc. etc.

Assim, pouco importa se Pablo Marçal não tem proposta nenhuma para a cidade e menos ainda se a grande máquina de mentiras do bolsonarismo faz parecer que ele não é apoiado pela família miliciana¹. O que interessa para essas pessoas que vão votar no bolsonarista-velocidade-cinco-do-créu é que ele é "macho", que não tem medo de dizer as "verdades" que elas mesmo gostariam de dizer, que não tem medo de dizer que mulher inteligente não vota em outra mulher e todas as outras barbaridades que ele vomita diariamente e a cada debate que a justiça eleitoral permite que ele participe.

Nisso tudo, a conversa anticomunista não passa mesmo de conversa, porque, ao contrário da esquerda tradicional, a extrema direita bolsonarista já entendeu que a ameaça vermelha já não é mais ameaça há muito tempo. Tanto é assim que para os bolsonaristas Lula é comunista mesmo tendo governado o país acompanhado por um vice-presidente que era um dos maiores capitalistas do país e tendo sempre grandes nomes ligados ao mercado atuando na linha de frente da área econômica. Na gramática bolsonarista e esquizofrênica de Pablo Marçal, o que não é espelho é feio e até José Luiz Datena é comunista. Ou seja, o anticomunismo é conversa pra boi dormir, ou melhor, pra boi votar. 

Enquanto tudo isso acontece na maior cidade da América Latina, aquela esquerda que odeia as pautas identitárias assiste a tudo de camarote, talvez torcendo para que o mundo exploda e o proletariado finalmente acorde para fazer a revolução a partir das cinzas e dos cadáveres insepultos deixados pela cavalgada fascista pós-moderna. Não seria a hora dessa esquerda (re)incorporar essas bandeiras? Não seria bom um mea-culpa para entender as razões das pessoas que têm lutas particulares ou expressas por grupos específicos, e que afastá-las e desqualificar as suas trajetórias e batalhas, isso sim provoca a divisão da luta de classes?

Talvez seja hora dessa esquerda se dar conta que ela é também responsável pelos bolsonaros e, pior do que eles, pelos marçais que se criam na política, que nos mostram a cada dia que o velho comunista Bertoltd Brecht estava mais do que certo quando disse que o fascismo é uma cadela permanentemente no cio. 

¹Tenho bastante claro que isso não passa de uma estratégia bolsonarista para levar os dois candidatos neofascistas ao segundo turno. 

*Imagem de destaque: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/07/26/preciso-e-de-deus-e-do-povo-diz-marcal-sobre-participacao-de-bolsonaro-na-campanha-de-nunes-em-sp.ghtml. Acesso em 1º/10/2024.

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