Outros tempos (ou o tempo da política...)
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O professor João Cezar de Castro Rocha é um dos maiores estudiosos da extrema direita transnacional e da sua versão brasileira, o bolsonarismo. Lançou nos últimos anos dois livros essenciais para a compreensão da moderna expressão do fascismo: "Guerra Cultural e retórica do ódio" e "Bolsonarismo: da guerra cultural ao terrorismo doméstico"¹. Um dos mecanismos de funcionamento do sistema, segundo Castro Rocha, é a manutenção da massa em permanente estado de excitação. Entendendo isso fica mais fácil compreender a dimensão de coisas como anunciar a prisão de Alexandre de Moraes durante os acampamentos golpistas e ganhar a capa das redes rezando para pneus ou evocando alienígenas.
Bolsonaro e seu exército criminoso estavam certos da reeleição. Quando essa expectativa foi frustrada, de imediato foi acionado o plano b, que era a manutenção do poder pelo golpe. A partir daí aconteceu tudo o que sabemos, num processo de violência progressiva, permeado por cenas ridículas como essas lembradas aí em cima, e que, ao contrário do que muita gente pensa, não terminou no 8 de Janeiro. Pelo contrário, as forças bolsonaristas se mantiveram aglutinadas e tiveram uma injeção de ânimo com o reaparecimento de Donald Trump à cena do crime, com grande possibilidade de ser eleito novamente. Paralelamente, o homem mais rico do mundo, Elon Musk, passou a usar o seu "brinquedinho" para fomentar e consolidar a retórica bolsonarista, certamente por ver nisso uma base de sustentação do projeto neofascista mundial.
O conjunto de forças progressitas brasileiras, que inclui uma esquerda sem identidade, acreditou que de alguma forma a eleição de Lula teria resolvido todos os problemas do país e jogaria Jair Bolsonaro, sua família criminosa e seus seguidores bandidos na lata do lixo da história. Ou não fizeram a análise precisa da conjuntura política ou não conheciam o próprio Lula. Há muito tempo Lula já não é mais o sindicalista radical que assustou os militares. A inteligência de entender a necessidade dessa mudança foi o que criou o "lulinha paz e amor" e garantiu a primeira eleição presidencial. Depois, a reeleição foi garantida pela consolidação do "novo Lula", cada vez mais longe do marxismo original e cada vez mais próximo de um padrão de "exquerda", que tanto beneficia bancos e grandes empresários que arranca elogios até do recém extinto súper ministro da inflação galopante, Delfim Netto. Para garantir a sua manutenção no governo, diante do pior Congresso Nacional da história, Lula faz concessões cada vez maiores aos grupos responsáveis pela manutenção da desigualdade social desde que as caravelas de Cabral chegaram por aqui. E aí está o maior perigo para o povo. Pensemos um pouco sobre a estrutura do poder.
A autoridade mais importante do país é, já há algum tempo, o Procurador-Geral da República. É dele o poder absoluto de manter o status quo ou promover mudanças no quadro político. O governo bolsonaro só foi possível pela presença de Augusto Aras na PGR, que atuou o tempo todo como advogado dos interesses da família, em sentido amplo. E aqui novamente entra em cena a ilusão da esquerda, que imaginou que o PGR nomeado por Lula daria um novo rumo à atuação do MPF. Além de manter o mistério durante quase um ano, sem dar pistas de quem seria o sucessor de Aras, Lula nomeou uma figura de quem pouco se conhecia, mas que logo se soube é um sujeito conservador, católico fervoroso, com posições bastante retrógradas em temas de grande importância, como por exemplo o aborto. E Paulo Gonet não decepcionou. Ao contrário do que dizem os influenciadores digitais petistas e aquela ala da esquerda que ainda se ilude com as instituições (nada) republicanas, a farta produção de provas incontestáveis dos crimes dos bolsonaros, sobretudo do patriarca, não tem nenhum efeito prático nas mãos do PGR. Em sentido contrário, as coisas vão devagarinho sendo ajustadas. Bolsonaro já se livrou de uma das suas condenações à inelegilibidade e não foi indiciado por promover a tentativa de fuga pela embaixada da Hungria durante o carnaval quando ainda tinha medo de ser preso. A investigação dos roubos das joias está cada vez mais próxima de virar pizza, como deixa claro a decisão do TCU em liberar Lula para usar um relógio de luxo que ganhou quando era presidente. E a política adotada para os amigos não difere, veja-se Ségio Moro, que foi tido como ex-senador por certa parcela iludida da esquerda, mas que se livrou com grande facilidade da condenação eleitoral. Dos crimes nem se fala.
O mais novo ato do que parece ser um acordão à la Romero Jucá é a matéria de Fábio Serapião e... Gleen Greenwald, (um dos antigos heróis da esquerda brasileira) na Folha de São Paulo. A reportagem, que deve virar série e tenta elevar (ou rebaixar) a conduta de Alexandre de Moraes ao padrão lavajatista, é munição para muito tempo de guerra do exército bolsonarista, mesmo que juristas e analistas políticos com verniz progressista tentem minimizar. E sendo a política uma arte, ela é por vezes de difícil compreensão e atua como uma complexa rede, que abrange campos diversos. Ou será verdade que a Folha descobriu apenas agora que o Alexandre do STF é o mesmo do TSE e por acaso resolveu jogar a bomba justamente quando o próximo presidente do Banco Central adere ao combatido (inclusive por Lula) discurso de Campos Neto sobre os juros? Ora, para além dos projetos de poder e da manutenção das estruturas criminosas que movem a família bolsonaro, quem está por trás da plataforma ultraliberal sustentada no mundo político pelo novo fascismo é o mercado. Lula, que em tempos idos teve como vice-presidente um dos empresários mais ricos do Brasil, nomeou banqueiros e rentistas para os ministérios da área econômica, e que agora mantém no Ministério da Defesa um sujeito que considera Jair Bolsonaro um grande democrata, e se emenda cada vez mais com o odioso centrão de Arthur Lira, está mais uma vez trabalhando de acordo com os interesses da Faria Lima, que, por sua vez, atende aos interesses de Wall Street.
Diante de tudo isso, fica cada vez mais escancarado que de nada adianta ficarmos ansiosos e ansiosas pela prisão de Bolsonaro e dos seus. Isso não só não vai acontecer como é cada vez maior a possibilidade de que o próximo presidente do país faça jus ao nome de messias e seja uma espécie de Dom Sebastião versão terra brasilis, que ressurgirá da poeira para redimir o povo escolhido. Porque, afinal, o tempo da justiça não é o mesmo tempo da política e um acordinho (ou acordão) não seria exatamente novidade na nossa "sólida" democracia...
¹ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. 1ª ed. Goiânia: Editora e Livraria Caminhos, 2021. e ROCHA, João Cezar de Castro. Bolsonarismo: da guerra cultural ao terrorismo doméstico: retórica do ódio e dissonância cognitiva coletiva. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.
*Imagem de destaque: https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/anistia-para-bolsonaro-nao-sera-vetada-por-lula. Acesso em 14/8/2024.
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