Um ébrio no Bom Fim
Fui ao dicionário pra ter certeza: brega, segundo o Houaiss é algo ou alguém "que não tem finura de maneiras; cafona; de mau gosto, sem refinamento, segundo o ponto de vista de quem julga; de qualidade reles, inferior; zona de meretrício".
Me interessa um pouquinho a ideia de que é algo ruim porque alguém diz que é. Mas quem é que tem autoridade pra dizer o que é e o que não é no gosto das pessoas? Na música e no futebol o Brasil produz mestres e doutores em profusão. Em geral são mestres de coisa nenhuma e doutores em nenhuma coisa. Mas o que dizem vira lei. Lei que varia de acordo com os humores do mercado, e, no caso que estou tratando, com os interesses das grandes gravadoras que dominavam o mundo da música até alguns anos. Esse assunto, que não é o meu no momento, está na origem do grande show de ontem à noite no velho e histórico Ocidente, do Musical Talismã. Conheço o Musical Talismã porque o meu amigo Marcelo Cougo, grande músico, compositor, produtor, ativista social, antirracista, antifascista e mais um monte de coisas, é um dos criadores da banda, ele e o Álvaro Balaca, que canta na Só Creedence, outra excelente banda.
Na minha infância, o dial do rádio transitava entre o noticioso da Guaíba, a velha Guaíba, não a emissora do bispo, e a Caiçara, rádio popular especializada em música... brega. Isso tudo no AM, claro, e sem imagens, obviamente. Naquele tempo algumas coisas eram bem definidas: Colorado era vermelho, rádio era rádio e TV era TV. Hoje em dia as coisas andam meio estranhas, mas isso também é papo pra outra hora. Cresci então ouvindo Wanderley Cardoso, Odair José, Perla, e andando de carona no Fuscão Preto do Almir Rogério. Tempos depois descobri que não era legal um jovem dos anos 80 e 90 curtir esse tipo de música. Era brega. Mas eu sempre fui meio brega, propositalmente brega. Não tinha grana pra usar tênis marathon e muito menos pra relógio G-Shock, então, como forma de me defender, dizia que não gostava dessas coisas. Mentira! Gostava, mas não sabia disso, ou melhor, sabia, mas negava e renegava. Isso foi legal e não foi. Foi ruim porque na minha ansiedade outsider e antissistêmica, deixei de curtir na época coisas que hoje eu sei que são muito afu, tipo New Wave e música pop eletrônica. Levei algum tempo pra perceber que contestar o establishment ia muito além de não ouvir a música dos top hits. Mas foi bom porque me deu a chance de conhecer coisas que não rolavam entre a galera descolada da época, tipo Altemar Dutra, Agnaldo Timóteo, Nélson Ned, Diana e por aí vai. E aí, passadas algumas décadas, a galera do Musical Talismã vem com essas coisas, que além de trazer a lembrança de um tempo bom que não volta nunca mais (Salve Tahyde e DJ Hum), bota todo mundo pra dançar (vi gente cheia de vergonha batendo pezinho debaixo da mesa) ou pra balançar as mãozinhas nos momentos, digamos, mais intimistas do show, que, rerspondendo à pergunta do Balaca ontem, tem que continuar!
O show foi grande, os caras tocam muito (a banda toda), a interpretação do frontman (se aplica na música brega?) é tão sensacional que em alguns momentos parece que eles vão esquecer a que vieram e seguir behind blue eyes ou embarcar num velho Fughetti com muita Luz e entrar na raia pra dançar um rock and roll. Mas a coisa da breguice tá lá. E é isso que interessa.
O Marcelo é meu amigo já de alguma data e temos algumas parcerias bacanas de papos e ações; não conheço pessoalmente o Balaca, mas, como eles falam quando explicam a coisa toda, o Musical Talismã é mais que um projeto musical, mas é resgate de uma cultura, que é talvez a mais verdadeiramente popular da música brasileira. Por ser popular é massificada, mas ainda hoje é rejeitada nos círculos da bacaneza cultural. Quando é aceita pela galera da alta cultura, é daquele jeito que a intelectualidade gosta de fazer, com um distanciamento seguro pra não ser confundida, como algo exótico, que entra nos debates e nos ouvidos com o carimbo do brega. Sabe aquele amigo que não é homofóbico e prova isso dizendo que tem amigo gay? É mais ou mesmo o mesmo tipo de intelectual de gosto refinado, que não tem preconceito com nenhum tipo de música, afinal de contas até escuta Márcio Greick.
Assim, eu desejo muito sucesso ao Musical Talismã. Não só porque o Marcelo é um baita amigo, ou porque os outros caras devem ser muito gente boa, e também nem só porque eles são bons pra caramba, mas também, e principalmente, porque as músicas que eles tocam dizem tanta coisa pra mim e pra muita gente. Então que essa gente solte os bichinhos, deixe rolar. E que o gosto do povo possa frequentar o high society, pra que essas pessoas finas, elegantes e sinceras, que tomam cerveja artesanal e ouvem os Gilsons (que são muito bons) e curtem Red Hot (que é uma banda ducaraleo) bebendo moscow mule abram um espacinho nas orelhas pro Vicente Celestino e pro Waldick Soriano, que os caras eram muito PHoDa!
*Imagem de destaque: acervo do autor (show no Bar Ocidente em 25/7/2024)
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