RNLA, um braZileiro


 


RNLA é um jovem homem negro, morador de um dos bairros mais pobres da periferia de Porto Alegre, e trabalha de 12 a 15 horas por dia, a depender do tempo que consegue ficar com as bicicletas alugadas para fazer entregas para o I Food. Frequentemente RNLA é motivo de piada por clientes e até por colegas de trabalho, porque vive "assassinando a língua portuguesa". Quando vai trabalhar, RNLA costuma usar as suas melhores roupas, compradas com um cartão de crédito popular quase sempre nas lojas da rua Voluntários da Pátria. RNLA gosta de usar tênis de marca, mas como não tem dinheiro para comprar os originais, compra modelos piratas muito bem feitos nas lojas do Centro Popular de Compras, mais conhecido como camelódromo. Nos raros momentos em que não está trabalhando, geralmente tarde da noite, RNLA escuta RAP e até arrisca alguns versos nos Slams organizados pela galera do morro. 

Uma vez, quando estava voltando pra casa, depois de um dia de pouco movimento na hamburgueria que ele faz a maior parte das entregas de noite, ele vê um carro de luxo subindo o morro e acha que o cara está meio perdido. Quando o carro para, ele pergunta para o homem que dirigia se precisava de ajuda, mas como o sujeito é estrangeiro e fala uma língua estranha, só com muita dificuldade é que RNLA entende que ele está procurando uma pessoa, que, como quase todas as que moram na comunidade, é conhecida dele. Consegue se comunicar de alguma forma com o homem, entra no carro e o leva até a casa do sujeito. Depois explica direitinho como ele deve fazer pra descer o morro e vai pra casa. 

Alguns dias depois, RNLA está voltando do trabalho e passa na frente da casa em que ele tinha levado o gringo no outro dia. O dono da casa chama ele pra entrar e diz que tem um presente que o figurão deixou. Era um relogião dourado muito irado. RNLA agradece, bota o relógio no pulso e sai feliz da vida pra casa. 

No outro dia, quando chega na hamburgueria, pergunta se já tem alguma entrega. Os colegas não falam nada e logo em seguida o gerente chama RNLA pra conversar lá dentro. Ele vai pra sala do escritório, mas o gerente diz que a reunião é em outra sala, que ele nem sabia que existia. Ele entra e vê três homens com cara estranha e logo em em sguida descobre que são da polícia. O gerente sai e tranca a porta. Alguns minutos depois, os homens levam RNLA algemado e desmaiado por uma porta dos fundos. 

Um  dos colegas de RNLA conhece uma jornalista e e comenta o caso. Ela se interessa e resolve investigar. Descobre que RNLA está preso, acusado de roubo de joia, formação de quadrilha, desvio de dinheiro público e mais um monte de coisas. É claro que ela estranha tudo e conversa com uma advogada amiga sua e as duas decidem começar a mexer nessa história. 

Umas semanas depois de publicar uma matéria sobre o caso num blog alternativo em que ela colabora voluntariamente, a jornalista levanta mais informações e tenta levar a matéria para o jornal em que trabalha, mas no outro dia é avisada que a empresa não deseja mais contar com os seus serviços. Um dia depois disso, o blog alternativo em que ela publicou o começo da reportagem é tirado do ar. À tarde, a advogada sua amiga liga e convida pra tomar um café. Avisa que não vai mais poder ajudar na investigação, porque descobriu que a história é tenebrosa, envolve lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e pessoas, fraudes em licitações e mais um monte de coisa, coisa de peixe grande, com envolvimento de juízes, promotores, deputados e tudo mais, e ela não vai se meter nisso. 

A jornalista decide continuar investigando sozinha, usando as suas redes sociais, que é somente o que resta pra ela, porque não consegue trabalho em nenhuma redação. Alguns coletivos de mídia alternativa tentam ajudar, mas todos são atacados e empastelados como se diria em tempos passados (... passados??). A jornalista é violentamente atacada por "defender bandidos". O facebook e o instagram dela são entupidos de mensagens falando em bandidolatria, dizendo que o jovem que ela defende, RNLA, é traficante, ladrão, assassino, vagabundo etc. etc. etc. Ela tem o whatsapp hackeado e começam a surgir mensagens falsas que teriam sido envidas por ela para grupos de traficantes e políticos "comunistas", alguns bastante combativos e famosos. Pessoas defendendo punição exemplar, até com prisão perpétua ou pena de morte para RNLA começam a ganhar as redes sociais e até alguns espaço da mídia corporativa. 

Passadas algumas semanas, a jornalista sofre um violento ataque ao sair de casa, é espancada por cinco homens e deixada quase morta na frente da sede de uma das ONGs que estava dando apoio à sua causa. Atualmente ela está se recuperando no hospital, mas ainda vai levar um bom tempo até que possa voltar às atividades profissionais. De RNLA não se teve mais notícias, apenas se sabe que foi indiciado, denunciado e condenado em tempo recorde e sem nenhuma prova além do testemunho dos policiais que o prenderam. Na ocasião, sem mandado judicial. Os defensores públicos que atuaram em revezamento na sua defesa não esgotaram as possibilidades recursais previstas nos códigos e regulamentos judiciários. Justiça feita. 

FIM

Se conseguiu ler até aqui, peço a gentileza de responder a uma pergunta simples: releia a história trocando as iniciais RNLA por JMB e responda se ainda assim ela faria sentido. 

*Imagem de destaque: https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/o-cheiro-do-fascismo.html. Acesso em 5/7/2024.


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