O mau entendido



A língua portuguesa oferece possibilidades discursivas infindáveis a quem sabe manejar bem as palavras. O governador Eduardo Leite concedeu entrevista ontem à BandNews, em que se disse preocupado com o volume de doações que estão sendo recebidas de outros estados. Disse que isso deve ser bem administrado para não atrapalhar a reestruturação do comércio local. Poderia ter sido mais direto e pedir que parassem de enviar doações porque o Zaffari precisa vender arroz e a Renner precisa vender casaco. Ou será que alguém pensa que o sempre alinhado governante estava pensando no mercadinho da família do seu Zé e da dona Mariazinha, que está debaixo d'água, quando falou em comércio local? Não, ninguém terá sido tão ingênuo.

Podemos começar a análise pelo veículo em que a fala foi disponibilizada. O público ouvinte da BandNews defintivamente não é o mesmo que vai ter grandes, eu disse grandes, dificuldades para reconstruir a vida depois da tragédia. A mensagem foi direcionada ao público de alta renda, sobretudo, e no limite às pessoas que integram o que a Marilena Chauí chama de classe mérdia, gente que não vai perder as suas fontes salariais e de recursos financeiros com a catástrofe, e que fazendo alguns ajustes aqui e ali, alguns apertos necessários, vai se restabelecer em um período de tempo muito menor do que aquelas que neste momento dependem única e exclusivamente das doações que, segundo o governador, vão atrapalhar o comércio "local". Entre essa última gente, que precisa mais do que nunca de solidariedade, está, inclusive, a família do seu Zé e da dona Mariazinha. Depois o líder da reconstrução foi às redes para pedir desculpas e aí a mensagem tem um alcance muitíssimo maior. 

Reinaldo Azevedo, que parece ter sido o primeiro a levantar a questão, entende que Leite está fazendo uma tremenda confusão de ideias. Pois eu discordo. Acho que não há confusão nenhuma, é tudo muito bem pensado e muito articulado na régua do programa ultra-liberal-nazi-fascista da extrema direita, da qual o engomadinho governante faz parte. Qual foi o discurso diário de Jair Bolsonaro durante a pandemia? Dizia o então presidente que o fechamento do comércio mataria muito mais gente do que o vírus. Qualquer semelhança não terá sido mera coincidência.

A lógica não é difícil de entender: 

ato nº 1: vai numa rede que atinge eminentemente um público de classe alta e média alta e faz uma fala que agrada a esse público;

ato nº 2: veicula em mídias que atingem um público muito mais amplo um pedido de desculpas com cara triste, que inclui todo o cenário do coitadismo, inclusive a velha máxima difundida pelo cristianismo durante os dois últimos milênios: "ninguém está livre de errar".

Quisesse dar um tom ainda mais dramático ao seu pedido de desculpas, Eduardo poderia acrescentar os clichês "atire a primeira pedra quem nunca pecou", ou o ainda mais chavão "errei por ação, mas nunca por omissão". 

Não, gente, não houve erro, não houve confusão de ideias. Houve um discurso muito bem estudado, inclusive quanto ao uso dos termos e da imagem adequada, para atingir determinado público, seguido por outro ainda mais refinado, que ainda teve a manha de tocar os corações dos gaúchos que puderam ver a humanidade do seu líder, cansado da luta diária, mas sempre na linha de frente com seu indefectível colete personalizado da Defesa Civil, e humilde o suficiente para reconhecer o erro e se desculpar. 

Não, gente, não houve MAL entendido. Eduardo Leite é um homem MAU e espero que isso seja muito bem ENTENDIDO. 

*Imagem de destaque: https://www.brasildefators.com.br/2019/10/18/artigo-or-por-que-a-pressa-governador. Acesso em 15/5/2024.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O futebol apresenta um novo indexador econômico: o latão. Ou: Do Corote à Chandon, a trajetória de uma traição.¹

A Índia é aqui. Desde 1550. Ou: ajude o juizinho a comer seu caviar

...vai passar nessa avenida...