A igreja está na no ar, ou melhor na rua. (Você tem medo de quê?)
Em 19 de agosto de 1989 chegou às melhores casas do ramo o LP A Panela do Diabo, último disco lançado por Raul Seixas em vida. Junto com Marcelo Nova e uma banda de rock diabólica, Raul deixou seu último recado e, como sempre, a coisa veio como um tijolo na vidraça¹. Cada faixa do disco rende um livro, mas no momento não vou escrevê-los. Minha proposta hoje é bem mais modesta. Apenas quero citar rapidamente a música Pastor João e Igreja Invisível, um rockaço lindo, como diria Caê, e ducaralho como diriam Raulzito e Marceleza. O ano era, repito, 1989 e o Brasil era um país de população eminentemente católica, pelo menos de acordo com os registros oficiais. Jair Bolsonaro ainda vivia no esgoto e sequer tinha sido batizado nas sagradas águas do Jordão. Foi nesse conexto que a dupla infernal resolveu dizer que "se a fé remove montanhas, também traz grana e um monte de mulher", y otras cositas mas.
Embora naquele final de década as palavas vindas da Santa Sé ainda ainda calassem fundo nos corações e nas mentes das brasileiras e dos brasileiros, os pastores joões da vida já andavam há tempos investindo no mercado da fé e se infiltrando nas instituições. Em um livro² com forte potencial de polêmica lançado em 2021, Idelber Avelar traz informações importantíssimas sobre essa ascensão evangélica, neopentescotal, e a influência na política, sobretudo na tomada de poder pela extrema direita bolosonarista. Ao apresentar uma divisão da base política de Bolsonaro em 5 partidos básicos, Partido do Boi, Partido da Ordem, Partido do Mercado, Partido dos Trolls e Partido Teocrata, o autor estabelece a atuação de cada um no circo de horrores que foi o governo bolsonarista. Mas sem se limitar a isso, puxa a conversa pra trás para lembrar, por exemplo, do vice-presidente de Lula nos primeiros governos, José Alencar. E aqui as coisas começam a fazer sentido, principalmente quando se explora a prática política do presidente petista, tratada em outros textos aqui mesmo. Lula é, como mostra Avelar, um grande administrador de antagonismos. Antagonismos que garantem a governabilidade, como por exemplo ao manter ministros simpáticos a Bolsonaro no próprio governo, mas que podem ser extremamente perigosos e nefastos, vide outro vice, Michel Temer.
Em 15 de novembro de 2023, assistimos o rebanho bolsonarista pastar solto nos campos estrategicamente não ocupados pela "esquerda" lulista. Essa tomada das ruas por quem até bem pouco não se arriscava a isso, começou na esteira do caminho trilhado por aquela juventude que reivindicava legitimamente a garantia de seus direitos mínimos, em 2013, mas que, por uma incapacidade de articulação do campo democrático, e certamente por uma certa arrogância consolidada por mais de uma década de governos petistas, abriu caminho para uma mudança de paradigma. A praça já não era do povo. A não ser que se amplie o campo semântico da palavra povo para abrigar uma parcela da população de classe média para cima, que tomou as ruas de assalto para exigir a queda de uma presidenta legitimamente eleita e que, críticas à política governamental à parte, não cometeu nenhum crime ensejador do impedimento. Golpe! Queira ou não admitir Idelber Avelar (e a leitura do livro citado mostra que ele não quer).
Uma característica forte dessa (já não tão) inusitada invasão da extrema direita ao campo de jogo historicamente dominado pela esquerda é a presença maciça do rebanho dos pastores evangélicos e afins. O neopentecostalismo se espalhou como uma metástase pelas instituições republicanas (?). Deltans e Felicianos, Damares e Michelles estão nas casas legislativas, nos órgãos do Judiciário e Ministério Público, no Executivo, enfim, em todas as esferas, como já estivera José de Alencar. E a esquerda (talvez ex-querda como diz um fraterno amigo) lulista o que faz? Responda quem sair às ruas hoje conferir in loco quem está "comemorando a república".
Thiago dos Reis, que faz um trabalho muito interessante no Plantão Brasil, certamente discordaria dessa visão. Para ele, que é talvez o influenciador digital mais visto no campo democrático, sempre há uma explicação para tudo o que Lula faz. E quem critica é citado como militante de "esquerda", assim, entre aspas. Mas, pensemos juntos, já não houve episódios suficientes para que a esquerda saiba que a única solução para um projeto democrático efetivo e de longo prazo é voltar às bases? Quem esperava um discurso adesista de Mano Brown em 2018 se deu mal. Ele foi lá e mandou o papo reto. Não ouviram, vaiaram. Em dado momento da fala, Mano Brown diz, entre os olhares que transitavam entre surpresos e constrangidos da turma política: "O que mata a gente é a cegueira e o fanatismo." O Partido dos Trabalhadores, o partido do povo tem que entender o que o povo quer, se não sabe, volta pra base e vai entender, falou Brown. O que se ouviu da plateia? Vaias. Foi preciso Caetano Veloso subir ao palco e meter todo mundo numa máquina do tempo que voltou cinco décadas. Ainda assim não adiantou e o resultado dessa prepotência autorreferencial foi a tragédia bolsonarista.
Lula é o maior político da história brasileira e era sem nenhuma dúvida a única pessoa capaz de frear a escalada nazifascista dos bolsonaros a partir de 2023. Mas já sabíamos que não seria suficiente. É preciso mais, muito mais. É urgente que Lule volte às bases e que a linda imagem gravada na retina do povo na histórica subida da rampa em 1º de janeiro deixe de ser só uma imagem. É urgente que se ouça Mano Brown. É urgente que a igreja volte pros templos e pros batizados nos rios e que a rua seja tomada outra vez pelo povo. Sem isso, o risco de bolsonaro voltar em 2027, mesmo com outra cara e outro nome, é tão grande quanto o número de fiéis que salafrários malafaias conseguem arrebanhar com a entrada nas bases populares que a esquerda lulista parece ter abandonado outra vez. Lula e o PT têm medo das ruas?
¹Tijolo na Vidraça é um CD triplo lançado por Marcelo Nova em 2001.
²AVELAR, Idelber. Eles em nós: retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2021.
*Imagem de destaque: https://istoe.com.br/a-gangorra-dos-evangelicos/ Consulta em 15/11/2023.
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