O rio que não é rio e as cheias seletivas (parte 3 de ...)


 


Pra começar a conversa de hoje, proponho um desafio: joguem no google uma pesquisa em imagens sobre os alagamentos recentes em Porto Alegre. Eu fiz com os seguintes termos: alagamentos porto alegre, enchente 2023 porto alegre, e cheia do guaíba 2023. Podem usar outras expressões para validar a pesquisa. Quando as imagens aparecerem, procurem especialmente as notícias dos grandes veículos de mídia coporativa, incluindo jornais, portais etc. Vejam em quantas matérias vão aparecer referências e/ou imagens do Cais Embarcadero e do Pontal. Dá pra incluir também a parte revitalizada da orla do RIO Guaíba (quadras de futebol, pista de skate), mas dessa área ainda vai aparecer aqui e ali alguma coisa. Mas dos outros dois empreendimentos, se acharem algo, por favor me indiquem, porque eu não encontrei. 

Isso poderia me levar a pensar que as áreas destinadas ao uso de uma parcela economicamente favorecida da população... (abandonemos os eufemismos). Isso poderia me levar a pensar que as áreas elitizadas, aquelas criadas para a burguesia, para o high society, para as pessoas que podem aproveitar o que a cidade oferece pela qualidade e não por ser de graça (outra vez, PEGÊ), que essas áreas, embora estejam às margens do RIO, não sofrem com as cheias. 

Por outro lado, as reportagens e registros audiovisuais mostram em profusão áreas periféricas, onde vive gente pobre, destruídas pelas águas. Essas matérias, têm, na grande mídia, invariavelmente um caráter que apela para o sensacionalismo, que explora o sofrimento das pessoas para ganhar audiência. Sim, há alguns efeitos positivos, estimula a solidariedade e, de certa forma, traz para o horário nobre uma realidade a que as pessoas do high society, e aquelas society médio, não estão acostumadas a ver e que em geral evitam, fazem de conta que não existe. Mas há uma sutileza nisso, que pode, talvez, ser analisada no campo dos estudos semióticos. Vejamos.

Ao mostrar a precariedade da vida à beira do RIO, subjaz a ideia que essas pessoas não deveriam viver ali. Em nenhum momento se cogita a hipótese de utilizar recursos para melhorar as condições de habitação, coisa que é possível, estão aí os embarcaderos e os pontais da vida pra mostrar. Mas isso não interessa. Vale mais dizer que as pessoas precisam sair dali. Esse discurso convence as próprias pessoas que vivem nessas condições que o erro é delas, que deveriam procurar outros lugares. Algumas incorporam de maneira tão forte essa conversa que acabam de fato abandonando as casas e indo, no mais das vezes, pras ruas. Outras insistem na permanência, até que o poder público perca a paciência e a confiança nos eventos naturais e resolva arrancá-las a forceps. Aqui na nossa cidade isso é assim desde a implementação das medidas de higienização social que originaram o bairro Restinga, por exemplo. Mais recentemente, e para seguir falando no pontal, como e para onde foi deslocada a comunidade que vivia ali no que se chamava Vila do Estaleiro? E a pequena Vila do Fumaça, que existiu até os anos 80 na Volta do Gasômetro? Ora, se ali não havia condições para as pessoas viverem, que tipo de mágica tornou possível a instalação de empreendimentos que, pelo visto, sequer sofrem os efeitos das cheias do RIO Guaíba? Se visitarmos a região das ilhas do (RIO) Guaíba, vamos nos deparar com paisagens absolutamente antagônicas, casas belíssimas, com marina privada, e gente vivendo em depósitos de lixo. Qual a explicação possível para o fato de que na mesma beira de RIO algumas pessoas possam dispor de tanto luxo e outras tenham de disputar um tomate estragado com os porcos

Quem sabe o Dudu ou o Tião possam nos dar essas respostas. Mas perguntem só quando eles não tiverem nada de mais importante pra fazer. Não vamos incomodar nossas lideranças...

*Imagem de destaque editada pelo autor a partir de fotos disponíveis em https://www.cilarimoveis.com.br/imovel/casa-com-5-dormitorios-a-venda-1264-m-por-8500000-ilha-da-pintada-eldorado-do-sul-rs/CA0082-CILA (imagem à esquerda na montagem) e https://blogconviverde.wordpress.com/2011/05/03/dica-de-video-a-ilha-das-flores/ (imagem à direita na montagem. Acesso em 7/10/2023.

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