A estranha tática de dormir com o inimigo e o perigo das ruas

 

Tenho dois tios, já falecidos, que prestaram serviço militar no Rio de Janeiro e trabalharam no Palácio do Catete. Se alguém xingasse um desses meus tios, corria sério risco de ser convidado pra resolver as coisas em frente a um pernil de porco sendo assado na brasa enquanto algumas garrafas de cachaça Pipa Oca eram derrubadas. Mas se o cara dissesse qualquer coisa do velho Getúlio, é bom que tivesse alguma dentista na família. 

Por conta das histórias que os meus tios contavam e das leituras que fiz e faço, já que o Estado Novo é um dos meus assuntos preferidos na história do Brasil, durante muito tempo considerei Getúlio Vargas o maior político brasileiro. Só que depois de ter sido o responsável por 3 governos e meio quase à esquerda, ter passado quase dois anos preso pelos criminosos da república lavajatista e com 70 e poucos anos ter voltado pra impedir o fascista de seguir no desgoverno, Lula assumiu o posto maioral. 

A prática política de Lula, desde que assumiu a persona Lulinha Paz e Amor, faz com que ele seja amado e odiado por gente de esquerda, odiado e respeitado por gente de direita. A habilidade no jogo político permite que ele seja adorado por banqueiros e empresários milionários e também por pessoas que corriam sério risco de morrer de fome e que só não morreram mesmo por causa das políticas sociais dos governos do PT. Essa habilidade construiu a formação de uma grande coalizão, frente ampla, como é chamada, que garantiu o seu retorno ao Planalto. E essa mesma habilidade me faz pensar que os bolsonaros, particularmente o Jair, vai sair de cena quase impune. 

O governo Lula aderiu à tática de criar manobras diversionistas. Em grau incomparavelmente menor ao do desgoverno bolsonaro, que era uma verdadeira fábrica de bombas de fumaça, mas não posso deixar de pensar nisso quando vejo Lula cair de pau no Bob Fields III e os juros continuarem altíssimos. Talvez agora que a Luiza Trajano, grande empresária, apoiadora de Lula, enquadrou o presidente bolsonarista do Banco Central as coisas comecem a mudar um pouco. Parece bem claro que a estratégia do governo é deixar o Lula soltar o verbo e fazer o discurso do gabinete pra fora, já que ele tem envergadura e cacife pra isso, enquanto Haddad segue quietinho e longe dos holofotes, na medida do possível, articulando as políticas econômicas do governo, que melhoram um pouco as coisas, mas estão muito, muito, muito longe de representar um verdadeiro programa de esquerda no governo. O arcabouço fiscal (que nome horroroso, a propósito) não é mais do que um teto de gastos melhorado e por isso é criticado mesmo pela base petista do governo. Atentem os servidores e as servidoras públicas, porque é essa categoria que vai pagar o pato sempre que a coisa fugir do planejado. 

Mas a técnica do desvio de foco que tem marcado esses primeiros meses do governo não se restringe à área econômica. A história nos mostra que a clássica divisão de poderes iluminista nunca funcionou bem no Brasil e nos últimos anos as fronteiras de atuação entre Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público foram destruídas. Dizendo isso, afirmo com bastante convicção que Jair Bolsonaro ainda não está preso porque está sendo protegido pelo governo Lula. Não é por acaso que no logo depois de Lula discursar atacando violentamente o genocida, dizendo que ele é o responsável pela tentativa de golpe, o Ministro da Defesa contrariou frontalmente a fala do chefe. Por que o governo Lula mantém no cargo, ainda mais um cargo de tamanha importância, um homem que considera Jair Bolsonaro um grande democrata? É muita vontade de dormir com o inimigo. Inimigo mesmo?

Do lado do extrema direita, o boi de piranha foi escolhido e se chama Augusto Heleno. O sujeito, que quando era moço tentou dar um golpe em Ernesto Geisel, cumpre no bolsonarismo um papel parecido ao que Lula exerce para a esquerda. Ele está liberado para defender a linha dura no Congresso Nacional e dizer bobagens que apontam para uma desconexão absoluta com a realidade dos fatos. (Que fique muito claro que não estou dizendo que Lula fala bobagens, apenas que ele exerce habilmente a função de dizer o que as pessoas em geral querem ouvir.) Desconexão programada, por óbvio, porque a sua doença mental pode até ser psicopatia, mas não é esquizofrenia. É algo mais ou menos assim: "Joguem tudo pra cima de mim que eu seguro a onda enquanto vocês ajeitam as coisas." Heleno pode ser preso? Difícil, mas pode. Se for preso vai cumprir pena? Não, pela idade, inclusive porque até que saia uma eventual condenação é provável que ele já esteja morto. Se tudo der errado pro velho golpista e a justiça for feita de forma extremamente rápida, ele alega algum tipo de senilidade e vira inimputável. 

Talvez alguém pergunte, e se ninguém o fizer, faço eu: e o celular do CID? Tenho uma hipótese, que pretendo apresentar aqui em breve, mas posso adiantar que acho quase impossível alguém ser tão imbecil para andar com uma bomba no bolso durante tanto tempo. Algumas coisas na política não mudam e as articulações realmente importantes dessa história toda certamente foram tramadas no velho estilo ACM, em reuniões cujo traje era de banho, realizadas dentro do mar, sem gravador, sem celular, sem câmera, sem nada. 

Quando penso nisso tudo, me ocorre uma pergunta: por que a hastag sem anistia não está nas ruas? Interessa ao governo e as forças que o sustentam ver o povo na rua? Parece que não. A rua é perigosa, há pelo menos 10 anos a gente sabe disso. 

*Imagem de destaque obtida a partir da edição de 19/6/2023 do Jornal ICL 2ª Edição.