Porto Alegre: uma cidade que cativa

 




No domingo, hoje, em meio aos festejos de Momo, fomos visitar o Parque do Pontal. Um lugar muito bonito, sem dúvida. E já o era antes do parque, do shopping, do hotel. Agora está remodelado, limpo, bem cuidado e, sobretudo, bem frequentado. Só pessoas de bem.

Antes ali existia um estaleiro, um dos mais importantes do país, cuja história é brevemente narrada em alguns painéis espalhados pelo parque. E, vejam que interessante, a história narrada nos painéis não esconde que aquela região era, em tempos antigos, um dos locais da cidade onde os escravizados iam despejar os dejetos dos senhores. Entretanto, em nenhum momento o texto fala em escravizados; em seu lugar se usa o termo cativos. Nada de errado, cativos tem etimologia latina e significa pessoa privada de liberdade etc. Mas, sejamos honestos, dizer cativo é menos impactante, do ponto vista semântico, do que dizer escravizado, né? Ou mesmo escravo, que, como se sabe hoje em dia, não é uma boa palavra. "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas", disse o Pequeno Príncipe à Raposa. A palavra original em francês é "apprivoisé", que se traduz normalmente em "domesticado". "Tu és eternamente responsável por aquilo que domesticas"? Não ficaria legal. Mas no contexto dos escravizados, domesticado é interessante, talvez, mas o mais interessante é mesmo usar o termo certo, pesado, forte, violento: escravizado. Mas na manobra linguística do empreendedor, cativo soa bem. Sigamos.

Os painéis trazem a  lembrança dos ... cativos do tempo em que vigorava o sistema escravagista, mas não trazem as figuras dos ... cativos mais recentes. Nenhuma referência à Vila Cai-Cai, que existia ali pouco tempo antes da limpeza da área (limpeza aqui usada em sentido amplo, inclusive para limpeza humana). Quando a Cai-Cai foi removida, em meados dos anos 1990, um dos argumentos estava baseado na falta de condições adequadas para a moradia naqueles lugares de beira do rio. Assim, talvez devessemos nos rebelar quando hoje a municipalidade cede aquele mesmo lugar para um hotel. Pobres turistas que terão de se hospedar em um local insalubre. E, pior do que isso, num local que antes era habitado por gente miserável e, antes dessa gente, era habitado por índios. Pobres e sofridos turistas da capital de todos os gaúchos. 

O parque oferece coisas bem legais para a população e é aberto, não tem cobrança de ingressos, o que vai permitir ao atual cronista da cidade, prefeito virtual, como é chamado por seus colegas de empresa, Paulo Germano, o Pegê, dizer que as pessoas ricas vão lá para aproveitar os serviços e o lugar e as pobres porque é de graça. Hoje ainda não vi nenhum pobre lá, mesmo que seja de graça. O mais perto do que pode ser alguém menos rico nesta manhã era eu mesmo e o vigilante do hotel, que, por curiosidade, era preto. 

Sim, eu, sei, sou chato, implicante, militante e tudo mais que tem de ruim nesse sentido; sim, eu não fico contente com a ... evolução da cidade; sim, eu reclamo de tudo; sim, eu sou contra tudo o que deixa a cidade bonita; sim, sim, sim, sim pra tudo isso e sim pra um monte de coisas mais. E tenho muita vontade de deixar de ser este mala sem alça, sem roda, sem nada. Para que essa transformação possa começar, algumas respostas me seriam bem-vindas:

1- Embora de livre acesso, aquela área será frequentada por pessoas de classes menos favorecidas?; elas se sentirão bem lá; elas serão bem-vindas lá?; as ... pessoas de bem se sentirão confortáveis com essas outras lá?

2- Se a pessoa não tem carro ou pelo menos uma boa bicicleta, e não pode pagar táxi ou uber, como ela fará para frequentar o parque?; o sistema de transporte público vai suprir essa demanda?  

3- Se o local não era adequado para as pessoas que moravam lá nos tempos da Cai-Cai, como ele ficou adequado agora para hotel, shopping, área de lazer etc.?; por que na época da remoção não foram feitos projetos para adequar o lugar para manter as pessoas que moravam lá em situação precária, mas que lá tinham as suas vidas construídas?; para onde foram removidas as famílias da Cai-Cai?; o local para onde elas foram removidas oferece melhores condições?; a remoção foi feita a partir de um projeto pensado para gerar o mínimo transtorno para elas?; a remoção foi acompanhada de um conjunto de políticas públicas aptas a qualificar e trazer dignidade para a vida daquelas pessoas?

4- O prefeito de Porto Alegre, este e alguns dos últimos que o antecederam, leram O Pequeno Princípe?; se sim, que interpretação terão eles dado à frase do Princípe para a Raposa?; eles se consideram, se não pela eternidade, pelo menos em algum momento, responsáveis pelas pessoas que "cativaram"?

Eu sou um chato mesmo! Viva Porto Alegre e seus empreendimentos para ... toda a população! 

*Imagem de destaque: Montagem feita a partir de originais publicados em:  https://averdade.org.br/2014/10/o-descaso-com-comunidades-pobres-em-porto-alegre/ e https://pontalshopping.com.br/. Acessos em 19/2/2023.

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