Quem denuncia quem não denuncia?

 


A função primordial do Ministério Público é denunciar. A denúncia é a regra, o arquivamento é a exceção. É preciso muito mais força na investigação policial para sustentar uma decisão de arquivamento do que para o oferecimento de uma denúncia. Basta que o inquérito apresente algum indício de crime para que o MP denuncie, sob pena de validar a impunidade. Na hipótese de não ser caso para punição, pode o próprio MP pedir a absolvição. Vale lembrar que o Ministério Público não está vinculado à decisão do inquérito, ou seja, pode haver denúncia mesmo que o inquérito sugira a não existência de crime. O contrário também é verdadeiro, mas não é recomendável. Mais ainda: pode haver denúncia mesmo sem inquérito. E a boa técnica da denúncia diz que esta não precisa e nem deve ser exaustiva. Faz-se uma narrativa breve do caso, apresenta-se a tipificação (enquadramento criminal) e encaminha-se a denúncia, cujos fatos elencados serão analisados de forma mais aprofundada ao longo do processo. Ao juízo cabe aceitar ou não a denúncia, mas a regra (não expressa) também é que ela seja aceita. Com isso, tem início a investigação na fase processual, propriamente dita, e ao réu ou ré, será oportunizado o mais amplo direito de defesa, como determina a Constituição Federal. 

Esse é, em linhas gerais, o mundo do direito penal. Mundo que foi posto do avesso pela Procuradoria-Geral da República, mais especificamente pelo Procurador-Geral da República nos últimos anos. A regra passou a ser não denunciar. Obviamente estou restringindo a análise às suspeitas de crime envolvendo o clã presidencial do último (des)governo. Augusto Aras, o PGR - no que foi seguido por Lindôra Araújo, a vice-PGR -, não autorizava sequer investigações sobre os bolsonaros, por mais força probatória que tivessem as notícias que lhe chegavam. 

Agora, num trocadilho pobre, diz-se por aí que os aras mudaram na PGR. Notícia de ontem diz que 39 golpistas de Bolsonaro já foram denunciados. O fato de que corre pouco mais de uma semana dos acontecimentos confirma a afirmação de que a denúncia não exige muita investigação. Se bem que tudo o que se produziu na mídia, inclusive pelos próprios criminosos, é material mais do que suficiente, não só para denúncia, como também para a condenação da bandidagem. Mas o que terá mudado na cabeça de Augusto Aras? Essa é fácil: o governo. 

Para ficar apenas com um exemplo, por certo o mais noticiado, a CPI da Covid apontou 10 crimes na conduta de Jair Bolsonaro. E se trata apenas da investigação relativa à pandemia, não estão incluídos os outros tantos crimes praticados à luz do dia pelo ex-presidente. Desses apontamentos, Lindôra pediu arquivamento de 7, certamente os mais graves. Dos 3 que sobraram - a saber: defesa de aglomerações, não uso de máscaras e pregação contra a vacinação -, Lindôra blindou as investigações, impedindo a Polícia Federal de acessar os documentos. 

Não é demais lembrar que a nomeação de Augusto Aras para a PGR não foi bem vista pelos seus pares. Dizia-se, na época, que Aras tinha ligações com o PT. E, ademais, Jair Bolsonaro estava quebrando uma tradição ao indicar um nome que não estava na lista tríplice elaborada pelos membros e membras do MPF. Para justificar, o genocida, assim tratado pela CPI, disse que não colocaria um “inimigo” na PGR e que “só uma coisa é certa: quem estiver na lista não será”. Se era de fato simpático ao PT, o PGR conseguiu esconder muito bem essa afinidade e garantiu que Jair navegasse tranquilamente mesmo em meio a borrascas. 

Agora, findo o tenebroso período do governo bolsonaro, com as máscaras fascistas derretendo e grudando na cara do ex-presidente e de seu exército (sentido literal e metafórico), será que Augusto Aras vai se assumir como rato e abandonar o navio à deriva? Rumores, que vão se consolidando como fatos na medida da nova postura do PGR, dizem que ele quer se reaproximar do PT, o que também é uma subversão da ordem republicana e do princípio da separação dos poderes, que se escancara por esta afirmação, atribuída a Aras: não pretende impor uma postura de enfrentamento ao Executivo que toma posse em 2023. O Poder Executivo não é inimigo da e do PGR e, por isso, não deve ser enfrentado por ele. Não fosse no Brasil seria risível um PGR dizer que não pretende enfrentar o governo, já que a ele cabe trabalhar dentro dos princípios da república, entre os quais o da impessoalidade. Mas no braZil nada supreende. 

Independentemente de qual seja o pensamento de Augusto Aras sobre o novo governo, se espera que ele passe a agir conforme determinam as suas funções institucionais estabelecidas pela Constituição. Isso, porém, não o livra de responder por eventuais prevaricações e/ou outras condutas durante o governo anterior. Resta saber se a tendência de Lula a articulações que lhe permitem, por exemplo, falar em "companheiro Sarney" em um de seus discursos de posse, fará com que ele deixe ir para o esquecimento (no braZil sabemos que isso não demora muito) toda a blindagem de Aras aos bolsonaros. Haverá alguém para investigar quem não investigou? 

Imagem de destaque: https://horadopovo.com.br/bolsonaro-e-augusto-aras-trabalham-juntos-para-acabar-com-a-lava-jato/. Acesso em 18/1/2023.


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