O couro vai comer. E não é no terreiro...


 

Djamila Ribeiro escreveu o Pequeno Manual Antirracista, livro que é pequeno apenas no nome e no tamanho, porque é um poderoso instrumento para nos orientar nas formas de combate ao racismo estrutural. Djamila é maravilhosa e a mim orgulharia muito ser digno de amarrar os cadarços dos seus tênis, ou desatar as suas sandálias, como diria João. O livro atende aos padrões modernos de leitura que exigem imediatismo. Há algum tempo fui advertido que deveria escrever textos mais curtos, porque, segundo o crítico, eu escrevo bem, mas ninguém tem tempo de ler coisas muito grandes, textões, na linguagem da hora. Há uma contradição nessa observação, porque se os textos são bem escritos, o tamanho não deveria ser um problema, mas resolvi me adaptar aos novos tempos, afinal, se as pessoas "não têm tempo" para textos grandes de gente que realmente escreve bem, imagina para mim, que apenas aspiro chegar lá algum dia. 

De qualquer maneira, Mestre Gil já disse que a gente deve andar com fé, que a fé não costuma faiá, então, na fé que um dia chegue a escrever bem, sigo escrevendo. E hoje, vejam só, resolvi escrever também um manual, o Pequeníssimo Manual Antibolsonarista. A bem da verdade, não chega a ser um tour de force, tudo poderia se resumir a uma receita. Assim como todo mundo sabe que o alho espanta os vampiros, para manter os fascistas do bolsonarismo longe não precisa muita coisa, apenas de um livro. Se for uma feira inteira, aí se cria um bunker. 

Ontem fomos à Feira do Livro no final da tarde. No caminho, aquela gente pouco fina, não muito elegante e menos ainda sincera dominava as ruas, com seus modelitos old fashioned de bandeiras amarradas no pescoço, ao estilo Batman, que consagrou o herói traíra Joaquim Barbosa. Bastou que pisássemos as pedras da Praça para a brava gente braZileira desaparecer como que por encanto. Aqui e ali se via algum papagaio patriota circulando entre as bancas, mas apenas um sujeito carregava uma sacola com alguns livros. Os livros criam uma barreira intransponível para os fiéis da seita bolsonarista e isso, que pode ser tratado com deboche, como pretendi fazer até aqui, é algo muito sério, porque escancara a dificuldade que as forças democráticas enfrentarão para combater a escalada da extrema direita, que, sinto dizer, é um fenômeno mundial.  

Giorgia Meloni recentemente foi eleita primeira-ministra no país de Mussolini, pelo partido Fratelli d'Italia-Alleanza Nazionale (Irmãos de Itália), fundado sob a graça do espírito do Duce; na Inglaterra, depois da grande manipulação das elites que levou ao brexit, o atual premier é um milionário representante do capitalismo; Viktor Orbán vai para o quarto mandato consecutivo como chefe político da Hungria com um retórica supremacista violentíssima. Para encurtar o caminho e resumir tudo, Israel elegeu o execrável Benjamin Netanyahu para o sexto mandato, agora ainda mais perigoso, porque respaldado por uma grande frente ultranacionalista. Ah, sim, não dá pra esquecer as chamadas eleições de meio de mandato, na terça-feira nos EE.UU., que inevitavelmente vão mostrar que o trumpismo está vivo e forte.

O que todos esses sistemas neofascistas têm em comum? A tática da guerra cultural para aniquilar o inimigo. E quando uso "aniquilar" e "inimigo", essas palavras têm sentido literal: aniquilar no sentido de matar e inimigo não como adversário ou antípoda político, mas inimigo mesmo, que, na expressão das doutrinas de segurança nacional, dever ser morto. Novamente recorro à possibilidade de que algumas pessoas tenham estômago forte e assistam ao documentário "1964: o Brasil entre armas e livros". Acreditem, é um experiência transformadora, porque nos faz ver de forma escancarada coisas que acreditamos só existirem como figura de linguagem. Figura de linguagem que foi usada pelo vice-presidente da república, sendo entrevistado como senador eleito:

"[...] que o outro governo, né, assuma o que tem que assumir, e pronto, e no dia primeiro de janeiro faça uma festa deles, porque a partir do dia dois O COURO VAI COMER."

Não é preciso explicar o sentido que tem a expressão "o couro vai comer" no jargão da caserna. Este é o discurso "moderado" do general? É recente a memória do que disse Aécio Neves tão logo foi publicado o resultado da eleição de 2014. As consequências nós vimos ao longo do segundo mandato da presidenta Dilma e no golpe de 2016, que possibilitou a sucessão do governo golpista que assumiu o poder naquele momento pelo governo fascista, eleito por parte do povo, vale dizer, a partir de 2019. Quando o general diz que no dia primeiro eles devem fazer a festa DELES, porque no dia dois o couro vai comer, está dizendo com todos os pingos nos is que o governo de Lula será "deles" e que do "nosso" lado o couro vai comer. Se isso é um discurso moderado, que pretende a pacificação do país, tenho que dar uma de FHC e rasgar tudo o que eu li e aprendi até hoje sobre política, ética e outras coisas que neste momento parecem ser irrelevantes.

Não pretendo mais falar em bolsonarismo, vou substituir por extrema direita, neofascismo ou terminologia equivalente, mas uma última vez digo que o bolsonarismo vai sobreviver sem Jair Bolsonaro. E vai sobreviver por causa de canalhas como este senador recém eleito, que consegue iludir com um discurso supostamente moderado e conciliador, mas que deixa dito nas entrelinhas que a eleição de Lula foi fraudada, porque ele deveria estar preso e não poderia ter sido candidato, abrindo espaço para o questionamento permanente da legitimidade do governo e, sim, com isso autorizando indiretamente os movimentos golpistas das estradas e na frente dos quartéis, que devem continuar, e, que, por outro lado, diz em linhas bem claras que a oposição vai criar um clima de ingovernabilidade. 

Comecei falando em um pequeno grande livro e fecho falando em outro, já citado por aqui, cujo nome diz tudo: O Fascismo Eterno, de Umberto Eco. E suplico: leiam. Se não levamos a sério o alho contra o vampirismo Temerista, e as consequências foram terríveis, não vamos cometer o mesmo erro com o fascismo bolsonarista.  

Imagem de destaque copiada de: https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/apos-debochar-de-audios-sobre-tortura-mourao-chama-golpe-de-1964-de-revolucao-democratica/. Acesso em: 7 de nov. 2022.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O futebol apresenta um novo indexador econômico: o latão. Ou: Do Corote à Chandon, a trajetória de uma traição.¹

A Índia é aqui. Desde 1550. Ou: ajude o juizinho a comer seu caviar

...vai passar nessa avenida...