"Deus escreve certo por linhas tortas". Bolsonaro e as 4 linhas da Constituição


 

Bolsonaro falou finalmente. Ao contrário do que pode parecer, o pronunciamento foi importantíssimo. Foi importantíssimo não pelo que foi dito, mas pelas entrelinhas. Ninguém esperaria que parabenizasse a vitória de Lula, claro que ele não faria isso, mas alguém poderia esperar que ele reconhecesse a legitimidade da eleição, sob o argumento que os bolsonaristas da linha de frente já o tinham feito, então, para evitar o isolamento absoluto, Bolsonaro também se manifestaria nesse sentido. Não aconteceu, embora analistas entendam que ele fez isso tacitamente ao agradecer a votação e ao autorizar Ciro Nogueira a abrir o processo de transição. 

Em primeiro lugar, o presidente não tem que autorizar ou desautorizar o processo de transição de governo, porque isso está determinado em lei (https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2022/10/31/brasil-vem-fazendo-transicoes-de-governo-reguladas-por-lei-desde-2002). O que Bolsonaro fez foi simplesmente nomear Ciro Nogueira para coordenar esse processo pela esfera do governo. E logo quem...

Por outro lado, Bolsonaro não garantiu que não tentará um golpe apenas porque disse que joga dentro "das 4 linhas da constituição". Essa figura de jogar dentro das 4 linhas da constituição aparece no discurso de Bolsonaro há muito tempo. E não por acaso. É preciso entender a frase no contexto em que ela foi dita agora. Jogar dentro das 4 linhas quer dizer respeitar o texto constitucional. Pouco antes, Bolsonaro disse que as manifestações que ocorrem nas estradas têm origem na injustiça eleitoral. Ou seja, se alguém desrespeitou a Constituição, foi quem conduziu o processo eleitoral. Bolsonaro atua de acordo com as regras constitucionais, e se a eleição não foi realizada nos termos da Carta, isso o autoriza a fazer tudo o que for preciso a fim de restabelecer a ordem democrática, que teria sido abalada pelas fraudes eleitorais.  

Em um dos primeiros vídeos que vi circular pelas redes retratando os bloqueios nas estradas, o sujeito que passava a orientação aos criminosos dizia que Bolsonaro apoiava os atos, mas não podia assumir isso porque estaria agindo contra a constituição. Na sequência, o bandido disse que na quarta-feira haverá concentração na frente dos quartéis. Talvez ele tenha errado o dia, porque hoje, terça-feira, já há essa movimentação

Observando os acontecimentos e os movimentos políticos desde o domingo à noite, e conversando com algumas pessoas sobre eles, estou racionalmente convencido que não há condições que possibilitem um golpe apoiado pelas forças militares. Mas esse é apenas o retrato do momento. Das quase 60 milhões de pessoas que votaram em Jair Bolsonaro, quantas querem um golpe? E que força elas têm? E quantas são manifestamente contrárias? E se o balão de ensaio dos bloqueios nas estradas ganhar corpo? O mundo mudou muito nos últimos 50 anos, eu sei, mas em 1972 o golpe na democracia chilena ganhou impulso a partir de uma greve dos caminhoneiros. E o Golpe de 1º de Abril encontrou respaldo na Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Movimento de caminhoneiros e as palavras Família, Deus e Liberdade dizem alguma coisa para vocês neste momento?

Os golpistas das estradas invocam o artigo 142 da Constituição, mas além deste dispositivo, há o artigo 15 da Lei Complementar 97/1999, que disciplina o uso das Forças Armadas na "garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem". Esses mesmos golpistas falam em 72 horas para Bolsonaro fazer a convocação. Ele esperou mais de 40 horas para um pronunciamento que durou cerca de 2 minutos em que disse apenas que joga dentro das 4 linhas da Constituição. O artigo 142 de que os golpistas falam tanto está nas 4 linhas, assim como a LC 97/1999 também está. Tudo está nas 4 linhas da Constituição, depende de como essas linhas são lidas.

Me chamem de paranoico, mas o golpe é sim uma possibilidade. Como diz o jurista Wálter Maierovitch, as coisas estão aí com um clareza solar. 

Imagem de destaque copiada de: https://www.poder360.com.br/brasil/governo-bolsonaro-ganha-na-justica-direito-de-celebrar-golpe-militar-de-64/. Acesso em 1º de nov. 2022.

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