Bozelenski: a semiótica do golpe
Acho que não é mais necessário insistir na ideia de que o bolsonarismo é muito maior do que Jair Bolsonaro. Ou, melhor, talvez seja prudente voltar a essa pauta, porque a atenção das forças de resistência muitas vezes parece se perder na imagem messiânica de Bolsonaro e se deixar encantar pelo ilusionismo promovido por esta figura patética. Depois de mais de dois dias em que a atenção da grande mídia, e consequentemente de grande parte da população, se dividia entre a expectativa pela fala do atual presidente sobre a eleição e as manobras golpistas nas estradas, ele armou um circo, mobilizou a imprensa nacional e falou por cerca de dois minutos. Incrivelmente os/as analistas políticos compraram a ideia de que ele reconheceu, ainda que tacitamente, o resultado da eleição. Erro flagrante! Vamos analisar alguns pontos daquela primeira fala:
"Quero começar agradecendo os 58 milhões de brasileiros que votaram em mim no último dia 30 de outubro."
A primeira frase dá o tom do discurso e tem exatamente o sentido contrário do que entenderam os/as analistas. Ele não só não reconheceu a vitória de Lula como deu um carteiraço de 58 milhões de votos.
"Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça, de como se deu o processo eleitoral."
Seria preciso mais clareza para dizer que a eleição foi fraudulenta? Por que alguém se indignaria e se sentiria injustiçado com um processo eleitoral legítimo?
Em seguida ele reafirma a legitimidade dos atos dos golpistas das estradas, apenas dizendo que não podem usar os mesmos métodos da Esquerda:
"As manifestações pacíficas sempre serão bem-vindas, mas os nossos métodos não podem ser o da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedades, destruição de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir."
Uma vez definido que as manifestações são legítimas, desde que elas não repitam as estratégias da Esquerda, não há por que reprimi-las. O recado foi às forças de segurança. Mas o que são os métodos da Esquerda? (1) Prejuízo à população: vejam que antes ele disse que as manifestações são "movimentos poipulares", portanto nas entrelinhas ele afirma que não há prejuízo à população; (2) invasão de propriedades: os atos golpistas se dão nas estradas que, em tese, não são propriedade privada; (3) destruição de patrimônio: mesmo a queima de pneus não provoca destruição de patrimônio efetivamente; (4) cerceamento do direito de ir e vir: aqui sim uma referência a um prejuízo objetivo causado às pessoas, porém, como já foi dito antes que as manifestações são populares, a restrição ao direito de ir e vir fica relativizada.
"A direita surgiu de verdade em nosso país. Nossa robusta representação no Congresso mostra a força dos nossos valores: Deus, pátria, família e liberdade."
Aqui as palavras chaves da lavagem cerebral bolsonarista: Deus, Pátria, Família e Liberdade. Desnecessário comentar.
"Nosso sonho segue mais vivo do que nunca."
Esta frase fala por si só, mas seria bom uma análise mais profunda sobre quais são esses sonhos e principalmente de quem são esses sonhos. Certamente não são os das pessoas atacadas violentamente pelo bolsonarismo e diretamente por Jair Bolsonaro (mulheres, pessoas negras, pobres, LGBTQUIAP+ etc.).
No final, a reafirmação do suposto perfil democrático, expresso na batida frase: "Sempre joguei nas quatro linhas da Constituição".
Gostaria muito que as pessoas que fazem análise política na grande mídia apontassem em que momento desse curto discurso Bolsonaro reconhece a legitimidade do pleito e afasta a possibilidade golpe.
Mas há um segundo momento nessa narrativa de fantasioso respeito pela democracia. Ontem Bolsonaro fez um pronunciamento rápido em vídeo. A estética foi radicalmente diferente da adotada durante os 4 anos de (des)governo. Bolsonaro apareceu sozinho, com uma aparência cansada e aparentando certa tristeza, que sempre toca na emoção das pessoas. Citou novamente o direito de ir e vir (de quem?) e os prejuízos à "nossa" economia, relativizando, porém, ao dizer que "você talvez tá dando mais importância a outras coisas agora, é legítimo". O que é legítimo, mais até do que os prejuízos à economia? A contestação ao resultado do pleito. Não esqueçamos que o discurso em favor da economia balizou toda a atuação criminosa do (des)governo durante a pandemia. Agora, entretanto, há "outras coisas" em jogo. Ao dizer que a "nossa" (sempre nossa) Polícia Rodoviária faz um excelente trabalho na desobstrução das rodovias, Bolsonaro mente desavergonhadamente, mas o mais importante deste momento do discurso é que ele diz que são muitos pontos e as dificuldades são enormes. Ou seja, as manifestações, que já foram afirmadas e reafirmadas como legítimas, além de terem origem popular, são enormes e dificultam o trabalho da PRF. "Não pensem mal de mim, eu quero o bem de vocês." Quando outros grupos protestam, a repressão deve ser rápida, forte e violenta, mas neste caso o que ele quer é o bem dos criminosos. Nem todo bandido deve ser morto para ser bom, enfim... Merece destaque especial a parte final do discurso, quando Bolsonaro recupera o mantra amor à pátria, família, liberdade, cores verde e amarela:
"Não vamos jogar isso fora, VAMOS FAZER O QUE TEM QUE SER FEITO. Estou com vocês... O pedido é rodovias... continuar lutando por democracia e por liberdade."
O discurso foi uma clara incitação à manutenção da mobilização da militância (fazer o que tem que ser feito), que foi legitimada por ser popular e ter origem na injustiça da eleição. Não é por acaso que Bolsonaro apareceu de camiseta, numa claríssima alusão às aparições de Volodimir Zelenski em seus pronunciamentos. O discurso do mundo ocidental coloca a Ucrânia como um país injustiçado, que tem o seu território invadido violentamente pela Rússia, que é o inimigo vermelho, e tem no presidente Zelenski um herói da resistência, que sempre aparece solitário, de camiseta, com aparência cansada e triste. Bolsonaro, sozinho, cansado, triste e de camiseta, é um herói da resistência contra a invasão do inimigo vermelho no Brasil verde e amarelo.
Em outra frente, Hamilton Mourão, o "moderado" vice-presidente, fala que o momento de contestar a eleição era outro, anterior ao pleito, porque, segundo ele, Lula não poderia concorrer. Agora como senador eleito, o general diz que houve fraude judiciária na absolvição do presidente eleito. Fica então uma fresta para questionar a legitimidade do processo eleitoral, mesmo que de certa forma, sem dizer isso no jargão jurídico, Mourão esteja dizendo que o direito a esse questionamento precluiu.
O golpe não acabou, apenas entrou em uma nova fase, se adaptou ao resultado das urnas. E a manobra golpista não está restrita à eleição e ao território brasileiro. Antes está inserida num contexto de escalada mundial da extrema direita, como observa Boaventura de Sousa Santos. Nesse grande sistema, as forças democráticas se iludem ou são manipuladas pela falsa ideia de que o reconhecimento internacional, sobretudo de Joe Biden (não dos Estados Unidos, mas do seu presidente) coloca o Brasil a salvo do golpe. Não!! O golpe está em pleno desenvolvimento, apenas mascarado num discurso supostamente democrático, mas que não resiste a uma análise pouco mais aprofundada. E, pior do que isso, com o apoio de forças que na visão equivocada ou guiada por interesses diversos da grande mídia, dão sustentação ao processo democrático brasileiro. Steve Bannon, velho conhecido da nossa política e amigo dos bolsonaros, Alex Jones, dono de uma das mais potentes redes de desinformação e produção de "notícias" mentirosas e criminosas, chamadas eufemisticamente de fakenews, estão atentos a tudo que acontece por aqui.
O golpe pode ter se metamorfoseado, se adaptado aos novos tempos de informação circulando em tempo real, mas existe e está em curso.
Imagem de destaque: acervo do autor.
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