Sérgio, um braZileiro
Não tenho nenhuma dúvida que se o debate de ontem e todos os outros desta eleição presidencial tivessem ocorrido em 2018, a história teria sido escrita com outras letras e não teríamos vivido a desgraça dos 4 anos bolsonaristas. Não, o país não estaria uma maravilha, mas certamente não estaríamos na tensão da sala de espera do inferno da possibilidade de reeleição de Jair Bolsonaro. E não tenhamos ilusão, por favor, Bolsonaro pode continuar no poder, seja pelo voto, seja pelo golpe.
Em que pese não haver qualquer possibilidade de comparação entre os dois candidatos, o debate de ontem mostrou que Lula já não é mais o mesmo político com domínio absoluto do discurso e da situação, capaz de botar no bolso velhas raposas da arte política, como se viu em debates desde o começo deste século. Lula vem de uma prisão política que tirou do Brasil a chance de evitar a escalada neofascista do bolsonarismo e leva nas costas a esperança de uma parcela gigantesca da população que já não aguenta mais Bolsonaro, como diz a própria propaganda da campanha. Aos 70 e tantos anos isso não é pouca coisa.
O momento mais noticiado do debate é quando Bolsonaro se valeu de um erro estratégico que Lula não cometeria em outros tempos e falou sozinho por mais de 5 minutos. Para a sorte de Lula, e do povo brasileiro, Bolsonaro é uma marionete imbecilizada do sistema para o qual empresta o nome, e usou o tempo inteiro que Lula lhe presenteou pra dizer bobagens sobre a Venezuela, Nicarágua etc., sobre o comunismo comedor de criancinhas (ops…), coisas que não interessam ao eleitorado mediano no debate do momento. Como se costuma dizer, a inépcia de Bolsonaro fez com que ele usasse um precioso tempo que ganhou de Lula para fazer pregação para convertido. Resgatando por um momento a habilidade antiga, Lula conseguiu um direito de resposta que deixou o genocida em maus lençóis, quando falou da corrupção imobiliária, da corrupção das "rachadinhas", do envolvimento dos bolsonaros com as milícias. Lula foi bem em alguns outros momentos, principalmente quando falou em pandemia e educação. Faltou, porém, explorar mais os pontos frágeis de Bolsonaro, como os que foram trazidos no direito de resposta e poderiam/deveriam ter sido ampliados.
Esse é um breve resumo do que foi o debate na parte da frente das câmeras. É fundamental, entretanto, que se analise o que aconteceu nos bastidores.
A história da tragédia brasileira dos últimos anos tem um personagem fundamental, que teve papel muito maior do que o próprio facínora que ganhou a presidência do país. Sérgio Fernando Moro é o nome do (ir)responsável. A edição nº 870 da revista Época, no já longínquo 2015, pré-golpe, portanto, traz uma matéria de capa intitulada "Os homens que estão mudando o Brasil". A foto da chamada mostra três figuras que seriam os condutores da mudança, segundo a revista: Carlos Fernando dos Santos Lima, Deltan Dallagnol e Sérgio Moro. Moro ao centro, como juiz, e os procuradores como espécies de guarda-costas, um de cada lado.
Acervo do autor.
Da matéria principal, que tem 4 páginas centrais e se complementa em reportagens acessórias, destaco o seguinte trecho:
"A missão da 'meninada' - como os procuradores da força-tarefa são chamados carinhosamente pelos colegas mais velhos - é enfiar a primeira estaca no coração da grande corrupção do país."
Vamos avançar alguns anos, observando a reunião de 22 abril, que selou o divórcio do presidente e seu ministro. Divórcio que teve acusações de traição de ambos os lados e em que o conje Moro disse que o ex-companheiro é um criminoso:
"Desde 2019, a Transparência Internacional vem documentando e denunciando inúmeros episódios de corrupção no governo Bolsonaro e as vastas evidências de crimes cometidos pelo próprio Presidente da República e seus familiares. Ainda mais grave, denunciamos ao mundo, em diversos relatórios, o desmanche, sem precedentes, dos arcabouços legais e institucionais anticorrupção que o país levou décadas para construir." (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63153126, acesso em 17/10/2022)
Mas o amor supera todas as dificuldades e o imbroxável e o incorruptível estão juntos de novo. Sérgio, o paladino da luta anticorrupção, o poderoso juiz que jamais seria político, foi eleito senador pela república de curitiba, ou melhor, pelo Paraná. Antes ele tentou ser presidente, não deu; tentou ser senador por São Paulo, não deu. Também não deu pra ser ministro do STF, que, ao contrário do cargo legislativo de senador, é vitalício. Jair puxou o seu tapete. Mas a capacidade de perdoar é própria de bons cristãos. Quando era ministro e servia a Jair, ele próprio perdoou seu então companheiro de ministério Onyx Lorenzoni, afinal o ex-corrupto se arrependeu. Como, então, não perdoar o próprio Messias? Sérgio Fernando perdoou e, para que Jair Messias não erre mais, ele decidiu assessorá-lo pessoalmente. São todos cristãos, enfim.
Jair Messias Bolsonaro é violento, cruel, se diverte com o sofrimento alheio, é homofóbico, machista, misógino, racista, mentiroso compulsivo, réu confesso de pedofilia, suspeito de corrupção e acusado de ser criminoso pelo próprio assessor, Sérgio Fernando Moro. Numa história de dar inveja ao melhor roteirista de novela mexicana, apesar de tudo, apesar da ingratidão, ao reencontrar o antigo amor, o coração do ex-juiz agora senador não segurou a emoção. Olharam-se nos olhos, Sérgio e Jair, e a velha paixão se reacendeu. Ou, como prefere Jair, pintou um clima.
O que leva Sérgio Moro a reabraçar a causa bolsonarista depois de ter renegado o próprio chefe? Ele já está eleito e pelos próximos 8 anos está com a vida garantida. Só que 8 anos passam ligeiro e Sérgio sabe que a sua incompetência não lhe autoriza projetar uma sequência no senado depois do primeiro mandato. Sérgio é braZileiro, e como tal não desiste nunca. Se ajudar Jair a se manter no poder, tem convicção que não será traído outra vez. Ganhará a cadeira na Corte Suprema. Pintou um clima, pintou uma chance.
Alguém já terá dito que o braZil não é pra gente amadora.
*Imagem de destaque copiada de: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52420397.amp. Acesso em: 17 de out. 2022.
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