Roteiro do golpe: princesas à procura de um imbroxável, o coração do herói e o papagaio que separou o braZil de Portugal
Tenho ouvido de pessoas amigas que os militares não vão embarcar numa aventura golpista com Bolsonaro. Essas opiniões sempre vêm embasadas em argumentos sólidos, mas discordo. Vejo o golpe como uma possibilidade muito assustadora. E os sinais foram dados ontem, no Sete de Setembro bolsonarista.
Bolsonaro enquadrou as Forças Armadas quando decidiu que a parada militar não seria no espaço tradicional da avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Eu acho esses desfiles um espetáculo ridículo, mas eles são importantes na vida da caserna. E Bolsonaro levou o evento para Copacabana. Ou seja, escancarou a inversão (ou subversão) na hierarquia da farda: o capitão botou o generalato no bolso.
Um dos argumentos usados por quem entende que os milicos não vão abraçar o golpe é que hoje não há mais espaço para isso, em função da repercussão negativa que teria mundo afora, e, ademais, não teria apoio de forças estrangeiras, como os Estados Unidos (Operação Condor e outros quetais). Então vejamos.
Quanto aos EUA, apoiar golpes em países economicamente relevantes é do dia a dia da natureza imperialista ianque. E não podemos esquecer que a derrota de Trump não significou o fim do trumpismo, que segue firme. E Donald Trump nós conhecemos bem e sabemos do que é capaz. Sobre isso, estejamos atentos e atentas, assim como a derrota eleitoral de Trump não acabou com o trumpismo, a iminente derrota de Bolsonaro não vai acabar com o bolsonarismo.
No que diz respeito à repercussão internacional, Bolsonaro já deu muitas provas que se lixa pra isso, o que ficou muito claro quando ele permitiu que o bizarro dono da Havan, que se apresenta como um papagaio de cabeça depenada, ocupasse lugar de destaque no palanque, à frente do seu próprio vice-presidente e candidato ao senado, e separando braZil e Portugal nas representações presidenciais. Portugal tem papel fundamental na simbologia dessas comemorações. Mais do que Luciando Hang, imagino, que, é bom lembrar, se tornou um dos homens mais ricos do país ao longo do (des)governo bolsonaro, e é um dos empresários golpistas investigados pela Polícia Federal.
Por outro lado, tem se dito muito que a campanha tenta desfazer a imagem misógina e machista de Bolsonaro. Nas duas oportunidades que teve para melhorar a sua imagem junto ao público feminino, o que fez o capitão? Numa atacou uma jornalista e as suas adversárias e na outra disse que as mulheres são princesas à espera de homens imbroxáveis, mostrando que não tem nenhuma preocupação em diminuir a rejeição (e o nojo) que desperta nas mulheres e conquistar votos femininos.
Sei que o (im)broxismo presidencial é assunto que está no primeiro item da ordem do dia da galera fazedora de memes e, não vamos negar, é irrefreável o desejo de tirar onda dessa, ou de mais essa, cretinice do presidente, mas tenhamos sempre em mente que o bolsonarismo também é especialista na produção de cortinas de fumaça. Enquanto Bolsonaro conclama suas testemunhas para atestar a própria virilidade, sobre a qual há controvérsias levantadas pela própria conje (ops...), o gás de cozinha aumenta de novo... Então, deixemos as manobras diversionistas para os piadistas e vamos ao que de fato interessa.
O bolsonarismo procura desesperadamente um fato novo, capaz de inverter as tendências. Ao cometer uma série de crimes eleitorais ontem, Bolsonaro deu ao TSE a chance de criar este fato novo. Diante do uso que fez da máquina pública e da apropriação de uma data cívica nacional como palanque eleitoral, praticamente obrigou a justiça eleitoral a abrir investigação dos atos, que podem até mesmo impugnar a sua candidatura. Com isso, o judiciário está numa encruzilhada: se não investigar e aplicar as sanções devidas, estará deixando de cumprir as suas funções institucionais; se, porém, agir nos rigores da lei, estará ocupando o lugar do atentado armado (de armação) em 2018 e criando as condições para a mitificação do mito (redundância propositalmente olaviana). Tudo o que o bolsonarismo precisa neste momento é de algo que possa ser considerado um golpe contra a sua campanha, o que transformaria o seu próprio golpe em contragolpe. E uma situação dessas faria a idiotizada militância bolsonarista ir às ruas com sangue nos olhos para quebrar tudo e exigir, como nas faixas, uma “intervenção” militar com Bolsonaro no poder. (Parêntese: o ingrêis de algumas faixas é pra inglês - não - ver...) Os militares, por sua vez, não estariam dando um golpe; como em 64, estariam apenas “intervindo” para garantir a ordem e restabelecer o regime “democrático”. Diante da inépcia do candidato e da falta de alternativas, foi uma jogada de estratégia inegavelmente inteligente do bolsonarismo, que botou a justiça e as candidaturas de oposição numa sinuca de bico. Como o judiciário só age por provocação, as campanhas de Lula, Tebet, Soraya e Ciro, que são as que mais aparecem, vão exigir a ação do TSE e STF, mesmo sob o risco disso se transformar no fato novo que pode justificar o golpe? Eu aposto que nada acontecerá. E torço que nada aconteça, pelas razões aqui expostas. Dos males que os desdobramentos de ontem podem trazer, a constatação de que o bolsonarismo consegue mobilizar muita gente para as ruas é o menor.
Para quem gosta de linguística, semiologia, interpretação de símbolos e afins, a ausência dos presidentes dos outros poderes da república no palanque das comemorações de uma data tão simbólica para o país, confirma que foi um ato político de campanha, mas também aponta para o distanciamento entre esses poderes, que coloca a ruptura institucional como uma possibilidade muito forte.
As duas impressões mais sólidas das comemorações do bicentenário da independência do braZil, para mim:
1- a esquerda entregou as ruas para a direita e ainda mais para a extrema direita; e
2- a chance de golpe está mais viva do que nunca.
Nesse teatro de horrores, em que o presidente da "pátria mãe" foi preterido pelo veio da havan, alguém sabe por onde anda o coração do Pedro IV?
*Imagem de destaque copiada de: https://www.estadao.com.br/politica/bolsonaro-deixa-presidente-de-portugal-incomodado-no-palanque-de-7-de-setembro/. Acesso em: 8 de set. 2022.
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