O rei está nu! (Mas o general nunca tira a farda)
Ontem ouvi a entrevista do vice-presidente da república no programa Timeline da Rádio Gaúcha. Ou será que era o candidato ao senado? Não importa, porque o senhor Hamilton Mourão é, na verdade, e nunca deixará de ser, general. E, ao contrário do que se tenta dizer de vez em quando, ele é um general linha dura. Evidentemente eu sei que general, assim como juiz, promotor etc., é um cargo ou posto vitalício, ou seja, o sujeito continua sendo mesmo depois da aposentadoria, ou reforma, no caso do general. Tecnicamente, então, Mourão será general até morrer. Salvo seja promovido a marechal, o que não seria nada surpreendente. Mas o que quero dizer é que seja lá qual for o cargo ou função que exerça, como a vice-presidência da república, continuará agindo como general. O homem deixa a caserna, mas a caserna não deixa o homem.
A entrevista ficou no meio do caminho entre um festival de imbecilidades, uma prova de despreparo para a função pública e a reafirmação de uma visão truculenta e militarizada de mundo. Depois de explicar porque terá de sair do país quando Bolsonaro também estiver fora, ele tentou justificar ter sido preterido na candidatura à vice-presidência. Não é difícil ver que ele e Bolsonaro não tiveram uma convivência pacífica durante o (des)governo, por isso o presidente não se sentiria à vontade em tê-lo novamente na chapa. Na falta de coisa melhor para ser dita, a versão oficial é que os dois chegaram ao entendimento de que Mourão é um bom nome para reforçar a bancada governista no Congresso, que, segundo o próprio, foi enfraquecida nos últimos tempos. Retórica, discurso vazio, como prova o noivado com o Centrão. Bolsonaro e o parlamento se entendem muito bem. A verdade sobre a exclusão de Mourão é que o bolsonarismo não tem bandidos de estimação. Nem de alta patente. (Para explicar a semântica desta última afirmação, devo dizer que a ênfase recai sobre a palavra estimação e não sobre o termo bandido.) Mourão foi limado pelo sistema, porque em algum momento agiu por conta própria, e lhe sobrou como prêmio por serviços prestados uma estranha candidatura ao senado por um estado em que ele apenas nasceu. Mourão é tão sul-rio-grandense como Nélson Gonçalves. Ou gaúcho, como convém dizer em tempos de celebração de heroísmos farrapos, que cada vez mais se sabem esfarrapados.
O general disse que o seu capital político começou a ser construído ainda quando estava na ativa: "(...) eu construí um capital político, vamos dizer assim, já vinha, né, dentro do meu período no Exército (...)". A Constituição Federal e o Regulamento Disciplinar do Exército proíbem os e as militares de envolvimento em atividades políticas, então como se explica que o general tenha constituído o seu capital político, seja lá o que isso quer dizer, dentro das Forças Armadas? No complemento da ideia, falou que o período no (des)governo lhe deu mais visibilidade. Mas o circo de horrores da entrevista não se resume a isso.
Ao tratar da fragmentação da extrema direita na campanha ao senado, Mourão explicou o que é a direita e disse que ele é o verdadeiro candidato desse campo político. Sobre a candidata-capacho do ruralismo e do alto empresariado, Ana Amélia, ele repetiu o velho e batido discurso do suposto apoio mútuo entre esta e Manuela D'Ávila para desviar a vinculação da Ana Gaúcha com a extrema-direita. O que ele não disse, obviamente, é que na relação Manuela/Ana Amélia, só quem perdeu foi a comunista. Sobre a comandante Nádia, que se apresenta em formato ainda mais reacionário que Ana Amélia, se é possível isso, o general se limitou a dizer: "A Nádia eu não entro em comentário, porque a Nádia ela tem uma quantidade de voto bem pequena não é caso da gente ficar discutindo isso aí." Mourão escancarou que o seu projeto não leva em consideração o interesse do povo que ele pretende representar. Uma vez eleito, e aqui falo em abstração, porque ele, Mourão, não será eleito, o senador representa o estado pelo qual se elegeu e, consequentemente, a sua população, e não somente o seu eleitorado. Por menos votos que a outra candidata tenha, é uma parcela da população que, caso o sujeito fosse eleito, seria desconsiderada. Na linha do (des)governo que representa, Mourão quer atuar nos interesses restritos da sua bolha.
Em dado momento, Mourão mostrou a carteira de identidade, provando que nasceu na cidade de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, portanto é gaúcho. Ele já havia lamentado no começo da entrevista que vai estar fora do estado no 20 de Setembro. Vale lembrar, de novo, que Nélson Gonçalves nasceu em Livramento, o que nunca fez dele um gaúcho (que bom para o Nélson...). O homem chegou a explicar porque torce pelo Flamengo e disse ser muito amigo do atual técnico do Grêmio, Renato Gaúcho, que, como se sabe, também torce pelo Flamengo. Essa gauchada...
Quando falou sobre a pandemia e especificamente a vacinação, foi um repertório de contradições, em que ele chegou a criticar a divulgação diária do número de pessoas vitimadas pela Covid, medida extremamente importante para mostrar a tragédia que é a gestão do governo sobre a crise. Disse que quando surgiram as primeiras vacinas, só tinha a Coronavac, "que vinha lá da China". Antes disso ele acusou a esquerda de ter politizado a pandemia. O que a dupla de entrevistadores deveria ter perguntado é quantas mortes ele acha que poderiam ter sido evitadas se o (des)governo que ele faz parte não tivesse ele próprio politizado a vacina e deixado de comprar a que estava disponível no primeiro momento pelo simples fato de ter sido produzida na China. Impressiona a naturalidade com que fala na demora da compra da vacina, mostrando o mesmo desprezo pela vida humana que o genocida ao qual ele serve. Questionado sobre a sua posição em relação à vacina e a postura de Bolsonaro no boicote à vacinação, o candidato desconversou: "(...) a palavra do presidente é a palavra do presidente", em clara tentativa de se descolar do facínora nesse aspecto. Sobre as pessoas que não querem se vacinar, a resposta foi lacônica, mas absolutamente reveladora da posição do homem e do governo que ele representa: "O que que eu vou fazer?".
Outro ponto central abordado na entrevista foi a questão do armamento. Mourão entende que todas as pessoas que quiserem ter "a sua arma devem ter a sua arma". O general refere, questionado pela entrevistadora, a questão dos CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores), cujo número de registros aumentou exponencialmente nos últimos 3 anos e meio. Não por acaso as cifras da violência também aumentaram violentamente nesse período, com a facilitação da chegada de armas no crime organizado. É mais importante, porém, o desenvolvimento da ideia, quando, ao tratar do porte de armas, ele disse que pra isso existem testes e análise dos antecedentes da pessoa, todo um processo legal pra isso, segundo as suas palavras. Ou seja, qualquer sujeito pode comprar uma arma, sem nenhum impedimento, mas para portar essa arma, aí sim terá de se submeter às regulamentações e leis. Não precisa ser especialista em segurança pública para saber que o fato de ter ou não autorização para portar arma pouco importa a quem tem uma índole violenta ao ponto de usar uma arma. Quando vemos um agente das forças de segurança assassinar alguém, como tem acontecido com frequência assustadora neste (des)governo, sabemos que ele tem licença para portar arma. Por outro lado, há muitos casos de assassinos que não têm autorização de porte, algo também corriqueiro no período que estamos vivendo. Isso mostra que não faz nenhuma diferença ter sido submetido ou não aos testes e normas que o general refere. O problema não está na burocracia, mas sim na arma: se tiver acesso facilitado, o indivíduo desequilibrado vai usá-la, tendo ou não o documento que o autoriza a portar.
Ao final, falando sobre a tragédia que tem sido o (des)governo na área da segurança, Mourão referiu o assasinato de Dom Phillips e Bruno Pereira. Vale transcrever as palavras exatas do general, mas sugiro que ouçam a entrevista para ouvir na sua própria voz a falta de importância que ele dá ao caso: "Essa questão ela foi saltou aos olhos pela morte, o assassinato covarde do Bruno lá que era um funcionário da Funai e tinha saído para trabalhar para a ONG lá do Vale do Javari, da Terra Indígena do Vale do Javari, e acompanhado dum colega de vocês, o jornalista britânico lá, por isso que se ressaltou isso aí. [...] Então, quando você vai tirar o ganha-pão dos caras, os caras reagiram de forma violenta." Reproduzindo a estratégia do bolsonarismo, o general deslocou a responsabilidade pelo cruel assassinato dos indigenistas, dizendo que a ação deles motivou a reação dos assassinos. Como representante de um sistema político que diz as meninas pobres são violentadas porque não usam calcinhas, Mourão está sendo bastante coerente.
A entrevista revelou, então, a verdadeira personalidade do general, que por vezes foi mascarada, diante da necessidade de colocá-lo como um contraponto de serenidade à imbecilidade de Bolsonaro. Hamilton Mourão é um general, pensa como um general, age como um general, construiu seu capital político como general e se propõe a ser um general no Senado. A sua plataforma política, como não poderia ser diferente, é militarista e, como tal, violenta. No Senado, Mourão pretende trabalhar por tudo o que é mais revoltante, violento e cruel no (des)governo Bolsonaro. Também isso pode ser visto como uma tentativa de golpe. Um golpe legitimado por uma pseudodemocracia, já que ele seria eleito dentro das regras do jogo democrático. Entretanto, como as estratégias e as práticas desse (des)governo praticamente militar são democráticas apenas na aparência, a candidatura deste general se apresenta como uma maneira de levar a militarização para dentro das instituições republicanas. É uma das facetas do golpe bolsonarista, e, por isso, é extremamente importante ter muito claro que não basta derrubar Jair Bolsonaro, é preciso parar o motor que mantém em funcionamento a máquina bolsonarista. Isso inclui não eleger bolsonaristas para os cargos legislativos. A história mostra que o nome Mourão está associado aos golpes mais violentos que a frágil democracia brasileira sofreu ao longo do século 20. Não vamos dar a chance de mais um Mourão golpista escrever seu nome no livro dos golpes.
*Imagem de destaque copiada de: https://ebradi.jusbrasil.com.br/noticias/625502881/debate-general-mourao-vice-de-bolsonaro-propoe-nova-constituicao-sem-assembleia-constituinte. Acesso em: 13 de set. 2022.
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