A maravilhosa Literatura Portuguesa e o 1º de Abril


 

Durante muito tempo um dos grandes mistérios da cultura nacional foi o que havia dentro da caneca do Jô Soares. Ao longo das entrevistas do seu talk show, o Gordo ficava bebericando alguma coisa dentro de uma caneca e ninguém sabia o que era. Eu confesso que até hoje não descobri. Mas pelo menos ontem pude saber o que tem dentro da cabeça de Jair Bolsonaro. Enganei-me pensando que é merda. Merda serve pra fazer adubo. O que tem dentro da cabeça de Jair Bolsonaro não serve para absolutamente nada. Minto! O que tem dentro da cabeça de Jair Bolsonaro serve para uma única coisa: idiotizar ainda mais os idiotas que ainda apoiam este psicopata.

Jair Bolsonaro é um poço sem fundo de ignorância. Num dos momentos mais (tragi)cômicos da entrevista, e não foram poucos, quando confrontado sobre ter dito que a vacina poderia transformar as pessoas em jacarés, ele disse que usou uma figura de linguagem, que isso faz parte da literatura portuguesa. Pena que isso não aconteceu antes de Caetano escrever o prefácio da máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe, ele certamente teria usado. E a cola na mão? Por que razão o sujeito fez apontamentos à caneta na própria mão? Não havia restrição ao uso de anotações, ele mesmo escrevia alguma coisa, bobagem, certamente, num papel durante a entrevista. 

De resto, Bolsonaro passou a entrevista como num festival de mentiras de invejar Nova Bréscia, tergiversações e nítidas tentativas de manter o controle ante os ataques da dupla do JN. A estratégia da entrevista ficou bastante clara: enquanto Bonner ironizava, quase ao ponto do sarcasmo, Renata não fazia nenhum esforço para esconder a raiva, que ficou escancarada quando o assunto foi a pandemia. Nesse sentido, é preciso reconhecer e admirar o autocontrole da jornalista. Certamente foi preciso muito sangue frio para segurar a vontade de arrebentar a cara de um sujeito que diz que tripudiou da dor das pessoas que foram vitimadas pela doença apenas para não ser politicamente correto. O homem é a personificação do mal. 

Entretanto, o ponto crucial do circo de horrores que foi a entrevista pode passar despercebido em meio a tanto lixo mental atirado impiedosamente na cara do povo. Willliam Bonner fez um esforço grande para que o candidato assumisse o compromisso de respeitar o resultado da eleição. E chegou a declarar que ele o fez. Mas não foi o que aconteceu. No único momento em que se pode dizer que usou de uma estratégia inteligente, e evidentemente isso foi treinado exaustivamente, Bolsonaro disse que o resultado das eleições vai ser respeitado, desde que elas sejam limpas. Qual o alcance dessa condicional? Ilimitado! Bolsonaro vai ser derrotado nas urnas e não vai reconhecer o resultado da votação pela simples razão de que a eleição não será limpa, na visão deturpada do bolsonarismo. 

É importante observar que Bolsonaro foi instado a afirmar que desautorizava a sua militância que defende golpe e ruptura institucional. Não desautorizou, limitou-se a dizer que eram manifestações pontuais, uma que outra faixa em meio às multidões, e que ficavam na conta da liberdade de expressão. Mas quem é a militância de Bolsonaro? Os empresários golpistas que se manifestaram em defesa de um golpe após a derrota de Bolsonaro são militantes bolsonaristas; Sílvio Santos é militante bolsonarista; grandes produtores rurais são militantes bolsonaristas; pastores e ministros de igrejas que promovem lavagem cerebral em milhões de pessoas são militantes bolsonaristas; os integrantes de um grupo chamado MP Pró Sociedade (ver mais aqui: https://theintercept.com/2020/11/01/como-atua-o-mp-pro-sociedade-grupo-que-usa-o-aparato-do-estado-em-defesa-da-ideologia-bolsonarista/) são militantes bolsonaristas; o alto escalão das forças armadas é militância bolsonarista. Gente poderosa.

Quando Bolsonaro se atrapalhou com as palavras, algo nada raro, e falou que o jacaré fazia parte da literatura portuguesa, ele quis dizer que estava usando uma figura de linguagem da língua portuguesa. Figuras de linguagem são recursos estilísticos da língua que permitem usar palavras e frases em sentido não literal. Quando alguém diz que comprou um Van Gogh, ninguém que não seja Jair Bolsonaro vai entender que a pessoa comprou o pintor. Fica óbvio que o que se comprou foi uma tela de Van Gogh. Para esclarecer, Bolsonaro se referiu ao jacaré num contexto em que falava de possíveis mutações provocadas pelo uso da vacina, ou seja, não era uma figura de linguagem, ele estava convencido daquilo. Mas não é isso que interessa diretamente neste momento. Importa dizer que numa habilidosa construção discursiva, que evidentemente não foi gestada na sua cabeça vazia, Bolsonaro deixou aberta a possbilidade de golpe, ao condicionar o respeito ao resultado das urnas à lisura do pleito. Se ele contesta uma eleição que ganhou, é razoável pensar que não se insurgirá contra a que vai sair derrotado? 

Para dimensionar com maior precisão a possibilidade de um golpe, é preciso ter claro que o problema não é Bolsonaro e nem mesmo os seus filhos assumidamente golpistas, mas quem sustenta o bolsonarismo. E quem sustenta o bolsonarismo são os grandes empresários, a mídia corporativa (Globo inclusa), os pastores, os clubes de tiro, os militares de alta patente (e os de baixa, por hierarquia) e Paulo Guedes. No festival de bombas de fumaça em que se transformou o debate político no braZil, o Chicago Boy está praticamente fora da ordem do dia. E ele é o artífice da plataforma econômica do bolsonarismo. Nessa altura do campeonato, Guedes já deve estar bem avançado nas negociações com grupos empresariais da elite capitalista para conseguir apoio para um golpe. E, como a história se repete em farsas e tragédias, podemos estar na iminência de uma nova "revolução redentora". E esta não será num Primeiro de Abril...

*Imagem de destaque copiada de: https://pt.org.br/bolsonaro-aumenta-numero-de-militares-em-30-orgaos-federais/. Acesso em: 23 de ago 2022.

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