O chefe é bom?

 Ubiratan Cazetta, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) afirmou ontem, em entrevista à rádio Gaúcha (https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/eleicoes/noticia/2022/07/conduta-de-bolsonaro-coloca-todo-o-processo-eleitoral-em-risco-diz-presidente-da-associacao-nacional-de-procuradores-da-republica-cl5tm4phq0012016vje8fe9w8.html), que as recentes condutas de Jair Bolsonaro podem representar crimes, mas disse confiar nas instituições republicanas, particularmente na Procuradoria-Geral da República, para fazer essa avaliação e encaminhar os procedimentos devidos.

Não se pode dizer que a desconfiança de prática de crimes pelos bolsonaros é novidade. Suspeitas em torno do presidente e seus filhos ocupam a ordem do dia do noticiário nacional há muito tempo, mesmo antes de 1º de janeiro de 2019. Não foi por outra razão que o próprio Jair Bolsonaro advertiu, sem nenhum pudor, que não iria esperar a polícia federal ferrar com a família antes de trocar alguém no órgão. 

Nesse circo de horrores, no espetáculo que permaneceu por mais tempo em cartaz, os artistas Omar Aziz,  Randolfe Rodrigues e Renan Calheiros, respectivamente presidente, vice-presidente e relator da CPI do senado que investigou a pandemia, centralizaram as atenções do ambiente político durante meses. A entrega do relatório da CPI foi feita com pompa e circunstância. O Ministério Público Federal disponibiliza um espaço no site da instituição para facilitar o acompanhamento do trabalho realizado pelo Ministério Público, nos crimes atribuídos pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, do Senado Federal (http://www.mpf.mp.br/sala-de-imprensa/cpi-covid-atuacao-mpf). Bolsonaro foi implicado em 10 tipos penais, gerando 7 ações em tramitação no STF,  2 em jurisdição internacional e 1 com atribuição do Congresso Nacional. Eduardo Pazuello, Marcelo Queiroga, Onyx Lorenzoni e outros membros do séquito bolsonarista também foram acusados na CPI. A lista completa pode ser encontrada aqui: http://www.mpf.mp.br/sala-de-imprensa/cpi-covid-atuacao-mpf/tabela-cpi-covid. As ações que tramitam no STF podem ser consultadas no site da Corte: https://portal.stf.jus.br/.

Portanto, material para investigar Jair Bolsonaro e seus filhos não faltam às instituições republicanas. Enquanto isso, notícia divulgada pelo Estadão nesta semana informa que Augusto Aras assinou recomendação para que os membros e membras do Ministério Público recebam valores adicionais por acervo de trabalho. Traduzindo: procuradores/as e promotoras/es podem receber gratificações extraordinárias de acordo com o volume de trabalho. Como se isto fizesse alguma diferença, a PGR correu a lançar uma nota explicando que Aras assinou a recomendação no exercício da presidência do Conselho Nacional do Ministério Público e não como Procurador-Geral da República. Além disso, disse que se trata apenas de manter a simetria entre as carreiras do MP e da magistratura (http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/orientacao-para-regulamentar-adicional-por-acervo-de-trabalho-e-ato-do-cnmp).

No começo deste ano, o mesmo Estadão publicou matéria mostrando que uma decisão de Augusto Aras, que é o chefe da PGR e por isso preside o CNMP, possibilitou que procuradores e procuradoras recebessem valores extraordinários, que em muitos casos ultrapassaram a cifra de seis dígitos, chegando até 446 mil reais (https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,aras-libera-pagamento-extra-de-quase-meio-milhao-a-procuradores,70003954656). 

Os princípios da administração pública estão instituídos no artigo 37 da Constituição Federal. São eles: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Interessa aqui pensar no terceiro princípio, moralidade. Moral é matéria estudada há séculos pela filosofia, pela sociologia, pela antropologia e por outras ciências humanas. Tomo aqui o conceito de moral no que ele tem de menos complexo, como uma ideia que está presente no dia a dia de qualquer pessoa, que minimamente pode discorrer sobre o que considera moral ou imoral. Há ainda um terceiro aspecto, a amoralidade. Diante disso, será moral, imoral ou amoral a concessão desses benefícios extraordinários quando a sociedade exige das instituições e seus representantes uma atuação forte e eficaz na investigação dos atos criminosos que se suspeita possam ter sido cometidos pelo presidente da república? É aceitável, do ponto de vista do conceito popular de moralidade, que o Procurador-Geral da República, ao mesmo tempo em que é cobrado por seus pares para atuar com firmeza na investigação dos atos de Jair Bolsonaro, assine um ato administrativo que pode conceder vantagens financeiras aos membros/as do MP? Veja-se que não questiono a legalidade do ato, tampouco a impessoalidade e a publicidade, muito embora, em relação a este último princípio, não pareça ser a melhor maneira de publicizar um ato administrativo de tamanha repercussão que ele chegue ao conhecimento público por matéria investigativa de um órgão da grande mídia. Mesmo assim, não se pode dizer que algum desses três princípios foi atacado. Acerca da eficiência, é preciso uma análise mais acurada para levantar qualquer hipótese. Mas e a moralidade? 

Não podemos esquecer que a nomeação de Augusto Aras para o cargo de PGR subverteu uma tradição, quando Jair Bolsonaro desconsiderou a vontade dos/as integrantes do MP e não nomeou a pessoa que eles/as indicaram (https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/procuradores-em-luto-e-chamam-nomeacao-de-aras-de-retrocesso-constitucional/). Analisando a atuação do PGR no que diz respeito aos assuntos de interesse da família bolsonaro, talvez se encontrem pistas da razão que fez o presidente escolhê-lo em detrimento da vontade da categoria. Entretanto, a pergunta que mais me interessa ver respondida é: depois da concessão de tantos benefícios, os membros e as membras do Ministério Público continuam descontentes com a indicação de Augusto Aras?

Imagem de destaque copiada de: https://www.esquerdadiario.com.br/spip.php?page=gacetilla-articulo&id_article=45082. Acesso em: 21 de jun 2022.

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