Liberou geral: o estranho caso do racismo sem racistas



O Brasil é um país sui generis, sem nenhuma dúvida. Imagino que alguns fenômenos sociais só sejam vistos por aqui. Em 2018, por exemplo, o eleitorado votou em um candidato esperando que ele não cumprisse as promessas de campanha. Jair Bolsonaro pode ser acusado de tudo, menos de estelionato eleitoral. Ele sempre defendeu a violência extrema, a tortura, o estupro, nunca escondeu a própria misoginia e lgbtfobia. Quando se contrapunha ao eleitor bolsonarista as atrocidades do "mito", inclusive com vídeos próprios de grande circulação, a resposta era invariavelmente "Ele não vai fazer isso." Pois fez. E fez muito mais do que prometeu. As quase 700 mil pessoas mortas por uma doença, cujas medidas de combate são sistematicamente sabotadas pelo presidente e seu exército, estão aí para provar.

Com o aval do Planalto, aparelhado pelo Gabinete do Ódio, temos a escalada da violência generalizada, que se manifesta em todos os aspectos. O braZil não é mais um país seguro para as mulheres. Muito menos para as pessoas de hábitos afetivos e sexuais não convencionais. Quem pensa diferente do sistema e ousa manifestar publicamente essa discordância da conduta das "pessoas de bem", é potencial vítima da violência bolsonarista, e o brutal assassinato de Marcelo Arruda, praticado por um militante do exército de Bolsonaro, é apenas o ato mais recente e de maior repercussão por esses dias. 

No momento, porém, o que importa referir é um desses tipos sociais genuinamente brasileiros: o racismo sem racistas, que circula no país pelo menos desde que Gilberto Freire disse que aqui há uma democracia racial. Temos em Jair Bolsonaro o exemplo acabado do racista que nega sê-lo. Para convencer as pessoas disso, não se furtou de usar e abusar da imagem do militar Hélio Fernando Barbosa Lopes, que de tão devoto do Messias virou Hélio Bolsonaro, e também é conhecido como Hélio Negão. Andando para cima e para baixo sempre acompanhado daquele homem negro, Jair Bolsonaro sequer precisou dizer a clássica frase: "Não sou racista, até tenho amigos negros." Mas contra fatos não há argumentos, diz a sabedoria popular, e Bolsonaro provou de forma inconteste o próprio racismo ao nomear Sérgio Camargo para a a presidência da Fundação Palmares, a principal instituição governamental de fomento às políticas de interesse da cultura dos povos negros no Brasil. Camargo é um negro que nega os efeitos devastadores da escravidão no Brasil e diz que racismo estrutural é apenas discurso ideológico da esquerda. Um negro racista, portanto.

Esse quadro de "liberou geral", instaurado no braZil de Bolsonaro, permite que racistas enrustidos façam circular nas redes o "Manifesto" que transcrevo ao final, que é um primor de estupidez e racismo mascarado de humor. Fiz uma rápida pesquisa e constatei algumas características comuns às pessoas que viralizaram o absurdo texto:

- são homens brancos e afirmam que não são racistas; 

- alguns, como a pessoa que fez chegar até mim em um grupo, são filhos de italianos; 

- todos defendem a meritocracia, dizem que as pessoas têm as mesmas chances de ascensão social e que se não conseguem é por que não se esforçam o suficiente;

- afirmam que se houve racismo no Brasil, repito, SE houve, é coisa do passado. Ou seja, colocam em dúvida mesmo os mais de três séculos de escravidão oficial; 

- são, em geral, homens católicos, não necessariamente praticantes; e 

- são bolsonaristas.

Todos praticam deliberadamente, e, pior do que isso, impunemente, uma das formas mais cruéis de racismo, que Adílson Moreira define como RACISMO RECREATIVO. Em seu livro  de mesmo nome¹, ele trata dessa forma de racismo como uma manifestação de discurso de ódio e encontra nela um instrumento estratégico de manutenção de uma posição de dominação e hegemonia social: 

"O humor racista não é apenas um veículo de expressão de condescendência ou de agressividade, é também uma forma encontrada pelas pessoas brancas para defender a posição privilegiada que ocupam, razão pela qual não podemos ignorar o seu caráter estratégico" (MOREIRA, 2019, p. 85).

O racismo recreativo é extremamente perverso porque permite ao racista se esconder atrás do humor para destilar todo o ódio, de que muitas vezes nem ele próprio conhece a dimensão. Qualquer coisa que diga ou faça tem explicação na "leveza" da piada, no aspecto folclórico, na convivência pacífica e harmoniosa entre pessoas brancas e negras no Brasil. Como visto, é comum ouvir dessas pessoas coisas como: "A prova que não sou racista é que tenho muitos amigos negros."

Todavia, qualquer coisa que possa ser dita aqui vai parecer vazia ou pouca, diante do veneno asqueroso produzido pelos italianos do RS, subscritores do "Manifesto". Deixemos, então, que os racistas falem por si mesmos. Mas, claro, tudo para descontrair e distensionar o ambiente conflagrado. 


 MANIFESTO DOS ITALIANOS do RS

DATA VÊNIA, BELLO!

Como minoria segregada no Brasil, nós, Italianos do Estado do Rio Grande do Sul solicitamos providências urgentes por parte do  Governo Federal para sermos igualados aos afro descendentes, no que tange aos direitos dos cidadãos. 

Para tanto, pacificamente reivindicamos que seja aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que contemple os seguintes pontos:

01. Fica estabelecida a cota de 5% para italianos, e seus descendentes nas universidades públicas brasileiras.

02. Fica proibido chamar descendentes de italianos de: gringos, colono, carcamanos, etc...

03. Fica proibido chamar um indivíduo de italiano em locais públicos.

04. Fica estabelecido que os descendentes de italianos devem ser chamados de "italodescendentes"; chamá-los de italianos passa a ser considerado crime de racismo – inafiançável - a despeito do fato de a raça humana ser uma só.

06. Igualmente deve ser considerado crime de racismo o uso das expressões "italiano", "italianinho", "Italianão", "italiana", "italianinha", “carcamano”, "colono", "gringo", etc, para se referir aos ítalodescendentes de todo o Brasil.

07. Fica proibido o uso de expressões de cunho pejorativo associadas aos descendentes de italianos, tais como: "Coisa de italiano!", "Italiano carcamano!", "Só podia ser italiano", Tinha que ser colono, gringo italiano, cara de macarrão, comedor de pizza, etc.

08. Fica estabelecido o dia 25 de julho o "Dia Nacional da Consciência “Italodescendente” com feriado nacional e festa, de preferência na San Gennaro e na Achiropita.

09. Fica estabelecido o dia 25 de novembro o "Dia Nacional do Orgulho Italiano”, como feriado nacional, mesmo que não se possa chamar italiano de italiano.

10. Fica criada a Subsecretaria Especial de Políticas para Promoção da Igualdade Italiana, subordinada à Secretaria Especial de Políticas para Promoção da Igualdade Racial.

11. Fica estabelecido o prazo de 2 anos para a Subsecretaria Especial de Políticas para Promoção da Igualdade Italiana tornar-se Ministério dos Italianos juntando-se aos outros ministérios brasileiros, mesmo que não se possa chamar italiano de italiano.

12. Fica proibida qualquer atitude de segregação aos descendentes de Italiano, as quais os caracterizem como inferiores a outros seres humanos, pelo fato de pertencerem a uma desprezível minoria de gremistas e colorados.

13. Passa a ser crime de "ITALOFOBIA" qualquer agressão deliberada contra um descendente de italianos, mesmo que não se possa chamar italiano de italiano.

14. Toda criança, que usar a expressão "italiano cara de macarrão, come pizza com a mão", estará cometendo bullying e deve ser encaminhada para tratamento psicológico.

15. Em caso de um cidadão da raça negra chamar um italiano de italiano, este adquire o direito de chamar o negro de negro sem aplicação das sanções previstas em lei.

16. Fica estabelecido como Centro Nacional da Cultura Italiana a cidade de Caxias do Sul e 4 Colônias

18. Ficam, desde já, revogadas as disposições em contrário.

Bento Gonçalves - RS

Obs:  esta iniciativa deve, tambem, também, valer para ALEMÃES, RUSSOS, JAPONESES, HÚNGAROS , ESPANHÓIS, PORTUGUESES, IRLANDESES e demais nacionalidades, *exceto, claro, os argentinos.

¹MOREIRA, Adílson. Racismo Recreativo. Coleção Feminismos Plurais. Coordenação: Djamila Ribeiro. São Paulo: Sueli Carneiro/ Pólen, 2019.

Imagem de destaque copiada de: https://catracalivre.com.br/cidadania/bolsonaro-diz-que-helio-lopes-e-negro-porque-demorou-para-nascer/. Acesso em: 14 de jul 2022.


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