O rio que não é rio e as cheias seletivas (parte 1 de 2, talvez de 3 ou de 4)

 


Voltando aos escritos, quero falar de mais uma idiossincracia porto-alegrense: o Guaíba é um rio ou é um lago? No imaginário do porto-alegrense mais antigo, não há nenhuma dúvida: RIO! Modernamente, talvez dos anos 80 pra cá, começou a se falar em lago. Antes disso falava-se em estuário, mas isso eu nem sei direito do que se trata. Os argumentos que sustentam cientificamente cada posição não me interessam agora. O meu ponto é saber por que - mas principalmente pra quem - é bom que o Guaíba seja um lago e não um rio. O porquê é fácil e a resposta já foi colocada em debate algumas vezes: com a largura que tem, se o Guaíba for rio, 500 metros das suas margens permanecem livres da especulação imobiliária; sendo lago, essa proteção cai para míseros 30 metros. Já pra responder a quem, uma boa dica é perguntar para os donos da Cyrella e afins e para o seu preposto na prefeitura, Sebastião Melnick.

Dando de barato que o rio seja lago, entende-se um pouco melhor a tal revitalização da orla, lugar que é frequentado pelos ricos, porque gostam dos serviços disponíveis, e pelos pobres, porque é de graça (PEGÊ, 2023). Também fica mais explicado o entretenimento elitizado do Embarcadero, o comércio high society do Pontal, o condomínio que tem praia artificial, e por aí afora. Basta deixar 30 metros livres e ocupa-se o resto do jeito que melhor aprouver aos interÉsses da turma do andar de cima. 

Nessa onda de intervenção do bicho-homem nos ambientes naturais, adaptando as interpretações das coisas geográficas ao que favorece alguns homens-bicho, um assunto importante é a reação da Pacha Mama a essa intromissão, que tem se dado, entre outras formas, pelos eventos climáticos extremos.  Lembro de certa feita quando Raulzito foi atropelado por uma onda no Aterro do Flamengo. Com a genialidade de sempre, ele disse pra Glória Maria simplesmente que "a onda tá certa". Segundo Raul, quem estava no lugar errado era ele com o seu carro. O mar estava apenas retomando o que tinham lhe surrupiado em décadas anteriores. 

Porto Alegre não tem Flamengo, mas tem aterro. A expansão da capital como grande cidade se deu a partir de meados do século 20, em função do aterramento do rio. Em função do aterramento do RIO. Em função do aterramento do RIO. Em função aterramento do RIO. Em função do aterramento do RIO. Em função do aterramento do RIO. Com o avanço da cidade pra cima das águas do RIO, desenvolveu-se forte comércio na região central e depois em direção à zona sul. O próprio Beira-RIO, glorioso estádio do Sport Club Internacional, não recebeu o apelido que virou nome em vão. É Beira-RIO. Acontece que o capitalismo é selvagem e a selva de pedra do capitalismo não encontra limites. Seguiu-se aterrando tudo o que era possível. Mas como o mar do Aterro voltou pra pegar o que lhe tinham roubado - e o azar foi do Raul - o nosso RIO também faz as suas contraofensivas. E o azar é de quem? Veremos nos próximos episódios (leia-se nos próximos textos).

*Imagem de destaque editada a partir de original disponível em: https://acervo.popa.com.br/docs/cronicas/diluvio-quinto-afluente-do-guaiba.htm (acesso em 4/10/2023)

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