...vai passar nessa avenida...

 



"Dormia a nossa pátria, mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações"                                                      

O Brasil é um país diferentão. E isso tem reflexos até mesmo na maneira como falamos. Por exemplo: quando uma pessoa diz "pois não" após uma solicitação, quer dizer que ela vai atender o pedido, mas quando ela diz "pois sim!", com uma entonação mais pesada, quer dizer não só que não vai fazer como ainda deixa implícito que achou o pedido um absurdo. Dá pra trazer muitos outros exemplos e talvez um dos mais clássicos seja que aqui se calça bota e se veste calça. 

Esses fenômenos linguísticos, absolutamente naturais, diga-se de passagem, têm suas repercussões no jargão político também. Vejamos a palavra ANISTIA. Nos países em que o conceito de democracia não é distorcido, a concessão de anistia significa o reconhecimento de que as motivações para os atos das pessoas anistiadas foram, na sua época, muito relevantes e, de certa forma, a única forma de lutar contra as injustiças que estavam se propagando. No Brasil, os gramáticos de plantão entenderam que anistia quer dizer outra coisa e ampliaram o significado do termo para livrar a cara dos torturadores e assassinos mais abjetos do período de trevas que teve início com o Golpe de 1º de Abril. Isso permitiu que gente como o general Augusto Heleno, velho golpista da """revolução""" (atentem para as aspas triplas) fosse um dos homens fortes do (des)governo de Jair Bolsonaro. (Por falar nisso, há algum tempo não tenho notícias do general, que, a bem da verdade, hoje é marechal.) Mais ainda, a ampliação semântica do termo anistia permitiu que o próprio Jair Bolsonaro rendesse homenagem a um dos maiores criminosos da farda diante dos olhos e ouvidos de milhões, talvez bilhões de pessoas na votação do Golpe de 2016. O então deputado foi anistiado pela própria Câmara. 

A mesma flexibilidade que na linguística pode ser boa ou ruim, se vê na atuação das instituições """republicanas""". Recentemente, o Procurador-Geral da República de Lula, repito, de Lula, decidiu botar os processos contra Jair Bolsonaro na geladeira, a fim de não prejudicar os candidatos bolsonaristas nas eleições municipais. A Constituição Federal que não permite confundir apologia à ditadura com liberdade de expressão, ela própria adota o conceito iluminista de Montesquieu quanto à divisão dos poderes da república. O estado moderno, por óbvio, adaptou esse conceito às formas contemporâneas da democracia, mas a submissão de um poder em relação a outro continua inaceitável e inconstitucional. Ora, Paulo Gonet, o PGR de Lula, autoridade detentora da prerrogativa absoluta de denunciar Jair Bolsonaro nesses casos, não deveria se submeter aos humores eleitorais para fazer o seu trabalho. Mesmo porque esse trabalho já poderia ter sido concluído muito antes de que as eleições municipais pudessem servir de pretexto para não agir. Os crimes de Bolsonaro estão mais do que comprovados há muito tempo, inclusive quando ele ainda era presidente, de acordo com o relatório da CPI da Covid. 

Se por boa vontade considerarmos a decisão do PGR um ato de cautela - e não considero -, não podemos dizer o mesmo da Câmara Federal, que sem nenhuma preocupação com a repercussão eleitoral que isso possa ter (ou talvez exatamente para que tenha repercussão), vai botar em votação o PROJETO DE ANISTIA, que livra a cara não só de Jair Bolsonaro, mas de todos os Golpistas de 8 de Janeiro. Mas não é só. Segundo o artigo 1º do projeto de lei, “ficam anistiados manifestantes, caminhoneiros, empresários e todos os que tenham participado de manifestações nas rodovias nacionais, em frente a unidades militares ou em qualquer lugar do território nacional do dia 30 de outubro de 2022 ao dia de entrada em vigor desta Lei”. O período inicial de abrangência da anistia escancara vergonhosamente a intenção de limpar a ficha de Bolsonaro e seu exército criminoso, deixando o caminho livre para 2026. E o termo final, em aberto, autoriza que os golpistas continuem a trabalhar até que o objetivo seja atingido. 

Aqui é preciso voltar uma vez mais às questões linguísticas para trazer a definição da palavra anistia, que segundo o Minidicionário Houaiss, edição de 2009, é: "perdão de algum delito político ou legal". Salvo eu esteja muito enganado, nem os bolsonaros, nem qualquer dos golpistas admite que em qualquer momento tenham praticado algum delito. Qual a justificativa, então, do pedido de anistia, já que não há crime a ser anistiado? 

Engana-se quem pensa que o circo de horrores desmontou as lonas com a eleição de Lula (e muita gente ainda acredita nisso). A extrema direita condiciona a sucessão de Arthur Lira na presidência da Câmara ao apoio ao projeto, que será votado hoje na Comissão de Constituição e Justiça - CCJ, presidida pela deputada Carolina de Toni, bolsonarista raiz. Não há dúvidas que o projeto passará na CCJ e irá ao plenário, sendo lá aprovado, já que a ultradireita domina o Congresso Nacional (Câmara e Senado). Depois, a chance da lei ser declarada inconstitucional pelo STF é muito grande e isso vai acirrar o discurso contra o Tribunal, que também é pauta das votações na CCJ hoje, em PECs (Proposta de Emenda Constitucional) que limitam a atuação da Corte. Ou seja, não há ponto sem nó. A articulação fascista é feita em sucessão de eventos. A trama do golpe é muito mais complexa do que sonha a nossa vã filosofia. 

Enquanto alguns agentes políticos, ops, públicos, como o Procurador-Geral da República, pretendem vender uma imagem de superioridade democrática na sua atuação, outros agentes públicos, ops, políticos, não têm nenhum receio de levar as pautas golpistas à luz. E nesse caos, onde está o povo? Parece que a tentativa de retomada dos símbolos nacionais pelo povo pós-eleição de Lula inclui não só voltar a usar a camisa da seleção e a bandeira verde-amarela, mas também adotar a postura de dormir em berço esplêndido. Enquanto o povo dorme, a boiada passa. Mais do que nunca é atual a advertência do Chico que diz...

*Imagem de destaque: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2022/04/08/interna_politica,1358779/bolsonaro-ri-e-debocha-de-foto-de-lula-e-alckmin-nas-redes-sociais.shtml#google_vignette. Acesso em 10/9/2024.

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