Por Deus, o Inferno

 


A foto que destaca esta crônica faria Hieronymus Bosch rever o seu Jardim das Delícias Terrenas, tal a estranheza das criaturas retratadas, e Dante Alighieri mandar pro prelo outra versão do seu Inferno, tal o veneno que escorre pelas suas cores. Dela talvez se pudesse dizer o mesmo que disse Heinze, hoje o "alemão do povo",  aos ruralistas naquela ocasião em que falou que o gabinete de Gilberto Carvalho no governo da presidenta Dilma aninhava "quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo o que não presta". Pensando bem, não dá pra dizer isso não, porque na foto falta muita gente que não presta. Mas uma coisa é certa: a imagem é uma espécie de registro instantâneo do (des)governo bolsonaro. 

A Constituição da República diz que o Brasil é um estado laico. Não o braZil de Bolsonaro, que nomeia um ministro terrivelmente evangélico para o STF. O braZil de Bolsonaro, ao mesmo tempo em que pelo judiciário eleitoral impede a candidatura à presidência de um sujeito que cumpre pena criminal, libera um padre auto-ordenado para dar uma curva na divisão entre estado e igreja e concorrer ao cargo. Em verdade, e em nome de Deus, o padre (de festa junina) Kelmon cumpre um papel de agradecimento que Roberto Jefferson deve a Jair Bolsonaro pelo indulto concedido pelo presidente. Por isso, no debate da Globo, o sacerdote perseguido fez o trabalho sujo que o covarde Jair Bolsonaro não quis fazer. Levar um padre paramentado - ainda que a batina possa ser só uma fantasia - para fazer o enfrentamento contra a esquerda (que inclui até a candidata do União Brasil e o candidato do Novo, segundo o religioso) de certa forma subverte a laicidade do Estado e mostra que o slogan "deus acima de todos" é levado a sério pelos bolsonaros. Uma rachadinha aqui, uma fraudezinha milionária ali e alguns crimes milicianos nas costas não fazem de ninguém menos cristão, por supuesto. Como o padre, eles não têm medo do inferno.

Por outro lado, a presença de Carluxo, o filho zerodois, na assessoria de Bolsonaro durante o debate, algo que desagradou integrantes da campanha, mostra que o gabinete do ódio continua dando as cartas, queira o STF ou não. E Fábio Faria, ministro das comunicações, estava ali como que a afrontar a Globo, que tem sido algoz de Bolsonaro, já que nas horas vagas é genro do comunicador e histórico rival da casa dos marinhos, Sílvio Santos. 

Todavia, a presença mais simbólica é a do tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens do presidente. Ajudante de ordens talvez seja o eufemismo que ao longo da história as forças armadas usaram para designar o capacho que faz o que o chefe manda. Apenas uma hipótese. Mas o que faz um militar (bem) fardado num debate entre candidatos e candidatas à presidência da república? A função do soldado é obviamente intimidatória e escancara a verdade crua para quem ainda não entendeu de que lado estão os militares nessa guerra. Ao longo dos 3 anos e tanto de (des)governo, Jair Bolsonaro concedeu generosos benefícios aos militares, que incluem até mesmo nomeação de marechais fora de tempos de guerra. (Se bem que se o período de mandato até aqui pode ser considerado sem receio como uma guerra, se justifica a promoção dos generais). Bolsonaro aparelhou militarmente o Planalto e todos os órgãos do Executivo e nomeou imbecis para o ministério só pela patente. 

Escoltados pelas forças armadas, os bolsonaros passaram os últimos anos fazendo ameaças ao sistema democrático e às instituições republicanas. Que nível de razoabilidade nos autorizaria a pensar que vão aceitar com tranquilidade a derrota iminente? Ao ser perguntado se acatará o resultado da eleição em caso de derrota, o genocida presidente diz apenas que sim, desde que elas sejam limpas. Mas o que será uma eleição limpa para Bolsonaro? Aquela em que ele saia vencedor. Como isso não vai acontecer, a chance de um golpe violento é grande. Portanto, estejamos preparados/as, o inferno pode ficar ainda mais quente. Tudo em nome de deus, da pátria, da família e da... liberdade. 

*Foto de destaque copiada de uma postagem recebida pelo autor em um grupo de WhatsApp, sem indicação da fonte.

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