Está na hora da deputada Nikole encontrar Bertold Brecht



 - O que você pensa da terra plana?

- Oh eu posso ser sincero? Nunca nem estudei isso. (...) Eu nunca nem parei pra pesquisar isso. (...) Eu não me importo, sério mesmo, se a terra é plana, é oval, é quadrada (...) caguei. 

Este diálogo aconteceu em uma live e este trecho pode ser visto aqui.

O moço que responde à pergunta feita pela jovem mediadora da conversa, que para aliviar a barra do rapaz ainda ofereceu a oportunidade dele declinar da resposta, tem um rosto que poderia despertar simpatia em qualquer pessoa, um menino desses que a gente vê por aí e não se surpreende se estiver ajudando uma senhora com dificuldade de locomoção a atravessar a rua. Mas, quem vê cara não vê coração. Atrás dessa carinha de bom moço está um dos sujeitos mais perigosos dos tantos que hoje vivem no braZil. Defende governos totalitários, admira torturadores e assassinos, é bolsonarista do tipo raiz. Por ocasião do Dia Internacional da Mulher no ano passado, o jovem deputado Nikolas Ferreira, parlamentar mais votado em todo o país em 2022, pelo Partido Liberal (PL), que corre o o risco de ser extinto (o partido, não o deputado...) não se envergonhou de botar uma peruca loira, se transfigurar em deputada Nikole e vociferar um discurso venenoso, violento e criminoso atacando mulheres e pessoas trans e o que mais viesse na sua cabeça putrefada. Agora ele é o novo presidente da Comissão de Educação da Câmara Federal. 

Uma correligionária de Nikolas, ou Nikole, como talvez o deputado prefira ser chamado, foi escolhida para ser a presidenta da Comissão de Constituição e Justiça. Em 2020 essa parlamentar  causou alguma polêmica, especialidade de gente do bolsonarismo raiz, a propósito, ao postar fotos com armas, inclusive pesadas, e defender o armamento da população civil. No ano passado, durante a criminosa CPI do MST, a mesma deputada, atônita e sem entender exatamente o que estava acontecendo, foi chamada de ignorante pelo Professor José Geraldo da UnB. Irritada, provou a sua limitação cognitiva ao reclamar para o presidente da CPI, o bolsonarista raiz ten cel Zucco, que teria sido ofendida com categoria acadêmica pelo professor. 

Como todas essas coisas giram em torno do bolsonarismo, não podemos deixar de falar na família mais famosa do submundo do crime. Juliana Dal Piva, excelente jornalista investigativa, publicou no ano passado um livro-reportagem precioso, chamado "O negócio do Jair: a história secreta do clã Bolsonaro". Ela monta o quebra-cabeças da atuação criminosa da quadrilha comandada pelo ex-presidente desde que ele ainda andava às voltas com a possibilidade de ser despejado do apartamento da Vila Militar em que vivia com a mulher e os três primeiros filhos no final dos anos 1980. O livro detalha esquemas de corrupção da família, o envolvimento com as milícias, e corajosamente chega até os seus desdobramentos que atingem órgãos institucionais, como o Ministério Público do Rio de Janeiro e o Judiciário. Em 310 páginas são apresentadas provas (transcrições de conversas, trechos extraídos de autos de processos, matérias jornalísticas etc.) que por si só fundamentariam pesadas condenações que fariam os bolsonaros e seus comparsas passarem longos anos vendo o sol nascer quadrado. 

Seria maçante e até contraproducente encher as linhas deste texto com as inúmeras provas que autoincriminam aquela que muito provavelmente é a maior franquia criminosa da história país. O que interessa aqui é pensar nas razões que fazem essa bandidagem, para usar o jargão da turma, andar livremente pelas ruas do Brasil e até do exterior. Com frequência vejo juristas defenderem a atuação do Judiciário, especialmente do STF, sob o argumento de que a justiça tem seu próprio tempo, as coisas não podem ser feitas de forma açodada, que as condenações devem estar ancoradas em provas robustas, que dificultem ao máximo as chances dos criminosos e das criminosas escaparem. Também não é raro ver analistas, inclusive o próprio Lula, defenderem que os/as acusados/as tenham direito à mais ampla defesa. Tudo certo, tudo democrático, mas será que o relógio que mede o tal tempo da justiça não está sem pilha ou precisando que se dê uma corda para que comece a contar os minutos do jeito certo? Enquanto o novo PGR vai acumulando milhares de páginas aos processos instaurados e preparando outros documentos para instaurar novas ações, enquanto a PF ouve exaustivamente delatores, testemunhas, golpistas convictos e criminosos de toda a ordem, os nikolas ferreiras e as caróis de toni seguem comandando as instituições republicanas e amarrando o governo nas próprias cordas do lendário poder de articulação de Lula. No final do ano teremos eleições municipais. Alguém duvida que com a deputada Nikole na Comissão de Educação temas como o kit gay, a mamadeira de piroca e a doutrinação marxista nas escolas voltarão à ordem do dia? Terá sido mera concidência a censura aplicada ao (monumental) livro "O avesso da pele" de Jeferson Tenório, poucos dias antes da escolha de Nikole para a presidência da CE? E será por acaso que essa prática começou a acontecer no sul do país, a região mais nazi-bolsonarista do braZil? 

O professor João Cezar Castro Rocha, que estuda profundamente a extrema direita no mundo, coloca o bolsonarismo no contexto de um esquema mundial, que em todos os lugares tem as mesmas bases e os mesmos métodos, reservadas a nós certas particularidades bem braZileiras. O professor sempre refere o sistema de crenças Olavo de Carvalho e a dissonância cognitiva coletiva que ele sustenta na retórica do ódio e na guerra cultural bolsonarista. Há uma metodologia muito bem estudada e muito bem aplicada, que inclui a atuação em diversas frentes. Ao mesmo tempo em que se começa a questionar a presença de um livro "subversivo" nas escolas, livro que, aliás, foi incluído no sistema durante o governo Bolsonaro, a produtora Brasil Paralelo, um dos principais artífices da disseminação de mentiras e do bombardeio de histórias fantasiosas que mantêm a massa fundamentalista em estado de permanente excitação e alerta, começa a propor uma revisão da história de Maria da Penha, que revolucionou a atuação institucional frente à violência contra as mulheres e pautou o debate no mundo todo. Negar o racismo e "mimimizar" as lutas feministas, não esqueçamos, está no núcleo da retórica bolsolavista. Obviamente não vou botar links para o lixo produzido pela rede cujo nome é incrivelmente autoexplicativo. Melhor é convidar as pessoas para que assistam o programa que vai trazer a própria Maria da Penha contando a sua história no próximo domingo: https://iclnoticias.com.br/historia-da-maria-da-penha-artigo/. E pedir que leiam Jeferson Tenório. 

Urge que as forças verdadeiramente democráticas do Brasil acordem para o que está acontecendo, parem de menosprezar as forças fascistas da extrema direita, deixem de acreditar que a eleição de Lula transformou o Brasil num paraíso, e assumam o protagonismo das lutas para eliminar o bolsonarismo e tudo o que ele representa. Enquanto esse combate for terceirizado a "heróis" como Paulo Gonet, Alexandre de Moraes e o próprio Lula, a deputada Nikole seguirá deixando seus rebentos mundo afora. A cadela do fascismo entra novamente no cio. 

*Imagem de destaque: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/10/grupo-de-puxadores-de-voto-para-a-camara-encolhe-78-e-se-resume-a-4-deputados.shtml. Acesso em 7/3/2024.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O futebol apresenta um novo indexador econômico: o latão. Ou: Do Corote à Chandon, a trajetória de uma traição.¹

A Índia é aqui. Desde 1550. Ou: ajude o juizinho a comer seu caviar

...vai passar nessa avenida...