A escolha de Cid
Das muitas frases feitas sobre este nosso país, talvez a mais verdadeira seja a que diz que o Brasil não é para amadores. Não é. Mas me arrisco a dizer que se nenhum amador é capaz, também ainda não nasceu profissional habilitado a decifrar o nosso grande gigante tropical deitado eternamente em berço esplêndido. Vamos pensar sobre o assunto que ocupa o primeiro posto na ordem do dia, a prisão do sabujo Mauro Cid. Antes porém, devemos aceitar que ao fazer a opção por esse assunto, abrimos mão voluntariamente de falar sobre o primeiro indiciamento contra Jair, sobre a primeira denúncia contra Renan, sobre os avanços da investigação Marielle/Anderson, sobre o julgamento eleitoral de Sérgio Moro (quando será?) etc. E também devemos ter consciência de deixar em segundo plano a reflexão sobre a satisfação do potencial sucessor do protofascimo brasileiro, Tarcísio de Freitas, que vê essa enxurrada de tragédias e escândalos se alternando nas manchetes como uma bela chance de se manter à margem do palco principal e com liberdade para construir a sua escada para a sucessão de Messias Bolsonaro na liderança do bolsonarismo.
Sobre el cid à brazilis, a ideia mais corrente entre analistas é que foi vítima de uma cilada, ou por ser um sujeito de baixa capacidade cognitiva, o popular burro, ou simplesmente por ser o bode expiatório da vez. Embora sem achar que o ex-capacho do capitão seja homem dotado de muitas luzes, não acredito muito nessas teses. Penso que Cid, na verdade, está procurando postergar tanto quanto possível a hora da sua eliminação. Eliminação física, quero dizer, ou para ser bem preciso, do seu assassinato. Ampliemos.
O cerco se fecha em torno de Jair Bolsonaro. O alto oficialato já botou seu nome no bloquinho da rifa. Mas ele não chegou até onde chegou simplesmente com o apoio da caserna e das forças políticas tradicionais. A história da família-franquia está ligada diretamente à criminalidade mais baixa, se é que é possível dizê-lo assim, do tráfico, do roubo, da extorsão miliciana. Ou seja, se o Messias cair, abre-se um efeito de sucção que vai arrastar muita gente pro fundo do oceano. O próprio Cid deu indicações disso nos áudios "vazados", ao dizer que se fodeu sozinho. Falou inclusive que o chefe ficou milionário no pix premiado. Os áudios de Cid precisam ser analisados à luz da ciência, da análise do discurso, da semiologia, da sociologia, e, em última, análise, do chamado "apito de cachorro". Alguém acredita que ele, Mauro Cid, escaparia da cadeia por ter colaborado com a investigação? No máximo ficaria enjaulado menos tempo do que o devido. Mas à custa de quê? Teria de trair o pacto e isso não é seguro, Adriano da Nóbrega que o diga.
Vou dar a minha hipótese. Mauro Cid falou o que não deveria ter falado e foi ameaçado por quem tem muito a perder com a sua boca grande. Assim, foi obrigado a desdizer o que tinha dito e depois redizer, para depois negar e enfim reafirmar, causando uma confusão gigantesca. Ao mesmo tempo foi "orientado" a mandar umas mensagens para sabe-se lá quem, talvez ninguém, simulando um desabafo - e aqui o tal apito de cachorro -, sugerindo fraude nos processos investigativos e corrupção das instituições, especialmente de Alexandre de Moraes. A velha estratégia de manter as hostes em permanente estado de excitação e alerta, um dos aspectos da dissonância cognitiva de que tanto nos fala o Professor João Cezar Castro Rocha. Para Mauro Cid, a prisão era certa, pouco antes ou pouco depois. Então que fosse logo. Ou será que em algum momento o ex-carregador de pasta pensou que seria chamado ao STF apenas para dar uma clareada nas suas declarações e depois voltaria pro aconchego do lar, faceiro e com o sentimento de dever cumprido? Para seguir o roteiro, mostrar surpresa e até simular um desmaio era prática teatral necessária. Um pouco de verossimilhança ao espetáculo circense é sempre bem-vinda.
O resultado de mais esse show de horrores é o reforço da tese da anistia, já que a cúpula das Forças nunca quis dar nenhum golpe, que, no limite da interpretação esquizofrênica, nem foi urdido pelo ex-presidente, mas por um auxiliar imbecilizado e capaz de dar a vida pelo chefe. Cid está sendo "gentilmente orientado" a se sacrificar em nome da causa. Ou isso ou a vala comum de quem trai o pacto mafioso. E, pensando bem, que lugar pode ser mais seguro para um dedo-de-seta neste momento do que a cadeia?
*Imagem de destaque: https://www.montedo.com.br/2023/09/18/mauro-cid-diz-a-pf-que-entregou-dinheiro-das-joias-a-bolsonaro-em-maos/. Acesso em 23/3/2024.
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